Arquibancadas no cemitério

Lugar que abrigou maior estádio de Porto Alegre hoje acolhe mortos e memórias de clube que sonhou ser grande

Marinho Saldanha Do UOL, em Porto Alegre Marinho Saldanha/UOL

O silêncio é comum aos cemitérios. O respeito aos que se foram divide espaço com a tristeza e a saudade, sufocando qualquer som mais alto. Mas não foi sempre assim na avenida Natal, número 60, bairro Medianeira, onde fica o Cemitério Ecumênico João XXIII, em Porto Alegre. Tanto que lá chama atenção um detalhe de paisagem bastante atípico: arquibancadas.

O pitoresco, porém, se explica na história. O local já foi casa para um dos clubes mais tradicionais da capital gaúcha: o Cruzeiro. Por ali, cruzeiristas se abarrotavam para assistir a partidas de Enrique Flamini, Alejandro Lombardini, Ortunho, Valdir, Hermes, entre outros. Onde hoje impera o silêncio havia gritos e vibração. Era um lugar de muita alegria, mesmo com apelido de Colina Melancólica — dado pelo número elevado de cemitérios na região.

O espaço que atualmente abriga o robusto cemitério vertical, com alguns andares de jazigos, antigamente dava lugar ao estádio da Montanha, que já foi o maior e mais moderno local de partidas de futebol da capital gaúcha. O primeiro com túnel de acesso dos vestiários ao campo, com capacidade para 20 mil pessoas e que chegou a ter um plano de cobertura que seria inédita para a época.

E é essa história que o UOL Esporte irá resgatar, em uma capital que hoje ostenta duas arenas modernas para colorados e gremistas. Uma história sobre o estádio que virou cemitério e o clube que hoje sobrevive em outro município.

Marinho Saldanha/UOL
Arquivo Pessoal

O maior estádio do Sul do Brasil

"Era uma coisa extraordinária. O maior estádio do Sul do país. Primeiro a ter entrada dos jogadores para o campo por um túnel, vindo dos vestiários. Os jogadores emergiam, era uma coisa linda", assim relata o historiador, jornalista e conselheiro do Cruzeiro, Matz Matzenbacker.

O historiador guarda na memória o antigo estádio da Montanha, casa do clube de 1941 até 1970. Imponente, com capacidade para 20 mil pessoas, ficava próximo ao antigo Olímpico dos gremistas, que foi construído anos depois. A casa do Cruzeiro foi inaugurada em 7 de março de 1941 na partida contra o São Paulo. E, na época, o placar reforçou a potência que era o time estrelado. Vitória por 1 a 0, gol de Gervásio.

"Era um estádio muito bonito, organizado, bem planejado. Era muito bom ir aos jogos", contou Armando Burd, jornalista, torcedor do Cruzeiro e que foi repórter setorista do clube para o jornal Folha da Tarde.

Orgulho do time que batia de frente com a dupla Gre-Nal na época, a Montanha tinha até plano de ampliação, que lhe faria entrar para história como primeiro estádio coberto da América Latina. O projeto, porém, não foi adiante e o foco mudou

O Grêmio jogava na Baixada, o Inter no Eucaliptos, estádios com arquibancadas de madeira, bem inferiores.

Matz Matzenbacker, historiador, jornalista e conselheiro do Cruzeiro

Arquivo Pessoal

Decisão de mudança

O estádio da Montanha viveu seus momentos de glória. Mas o crescimento da cidade e da torcida empurraram a direção do clube para um plano ousado: mudar-se de região. A Colina Melancólica era espaço destinado aos cemitérios na capital gaúcha. Por isso, vez ou outra, havia enterros durante treinamentos e em dia de jogos, algo que gerava algum constrangimento.

"Do lado oposto do pavilhão social, por exemplo, muita gente pulava o muro pelo cemitério vizinho. Ou viam o jogo em cima do muro que dava para o cemitério, furavam o jogo por ali. Era complicado porque tinham enterros, um local desconfortável", comentou Matzenbacker.

Laoni Luz, ex-jogador que atuou no Cruzeiro em 1970, porém, não se incomodava.

"Era apenas um cemitério, atrás do estádio. O pavilhão social dava de costas para o Olímpico, no outro lado, onde havia as arquibancadas, tinha um cemitério. Mas atrás das duas traves não tinha nada. As pessoas entravam e saiam normalmente, não tinha interferência", disse.

De resto, o transporte também mudou. No início da utilização da Montanha, os torcedores iam até o estádio, a maioria, de bonde, desciam na estação próxima e caminhavam até a escadaria que dava acesso às arquibancadas. Mas já no fim dos anos 1960, o crescente número de automóveis gerou um problema grave: a falta de espaço para estacionamento.

Ainda no presente contexto a superlotação dos cemitérios preocupava Porto Alegre. Havia oito locais já sem espaço e previsões da época indicavam que em até dez anos a cidade viveria um déficit de aproximadamente 80 mil sepulturas, considerando o aumento da população.

Então, o Cruzeiro entrou em negociação com a Associação Cristã de Moços (ACM) e a empresa Cortel Engenharia. O acordo firmado ainda apresenta versões distintas e detalhes que o tempo tornou obscuros.

O Cruzeiro estava estrangulado, precisava crescer. Não tinha espaços para estacionamento. Mas o estádio era muito bom, um dos maiores do Brasil, o primeiro a ter entrada para o campo pelo túnel vindo dos vestiários. Tinha iluminação, concentração para o pessoal ficar.

Roberto Brenol Andrade, presidente do clube em 1981 e 1982

"Os jogadores emergiam, era uma coisa linda"

Arquivo Pessoal Arquivo Pessoal
Arquivo Pessoal
Dirigentes do Cruzeiro observam área recebida em troca do estádio da Montanha

Contrapartida em jazigos e área que "encolheu"

Entre várias fontes ouvidas pelo UOL Esporte, não há um consenso sobre as razões do fim do estádio. Mas o fio condutor da história tem o percurso a seguir.

A ACM não era administradora principal do cemitério no início, ou principal interessada no acordo. Mas, sim, a empreiteira. A negociação foi toda conduzida por José Elias Flores, dono da Cortel, na época. A associação foi procurada apenas pela necessidade de ser uma entidade sem fins lucrativos para gerir o local. Por sua participação, recebeu uma contrapartida de 14 mil sepulturas e mais 10% do valor arrecadado com as demais, segundo jornais da época.

Já o Cruzeiro recebeu uma área que teria, inicialmente, 22 hectares, localizado no Morro Santana, Zona Leste da capital gaúcha. Lá, o clube tinha projeto de construir um estádio grandioso, com capacidade para 35 mil pessoas e coberto, tal qual já se via nos Estados Unidos. Além disso, teria campo de treinamento anexo e sede social. Haveria espaço para tudo.

No entanto, o local não tinha muro, grades ou qualquer tipo de proteção. Houve, então, muitas invasões de terreno. Quando o Cruzeiro foi tomar posse, os 22 hectares beiravam apenas 10. Existe, ainda, a versão de que um naco de terra teria sido negociado paralelamente. "Já há casas ali, sem que se cobre aluguel, pois são de uma camada da população que não tem condições de pagar", relatava matéria da época do jornal Zero Hora.

"O Cruzeiro caiu numa armadilha. A verdade é que o Cruzeiro recebeu muito pouco", contou o historiador Matzenbacker. "Houve um erro no contrato", concordou o jornalista Armando Burd. "Nada ali era pavimentado. Inclusive, da pedreira que havia atrás, o DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) pegava pedras para construir uma rodovia", explicou o ex-presidente Brenol.

O clube recebeu um valor de 28,9% sobre a exploração de jazigos do cemitério durante dez anos, ou até que 14 mil jazigos fossem vendidos. Mas, por detalhes contratuais, o espaço destinado à exploração do Cruzeiro não abrangia toda construção do cemitério, o que reduziu o lucro posterior. Houve, inclusive, uma ação na Justiça em meados dos anos 90 para tentar reaver algum valor, mas sem sucesso.

"O clube recebia algo que hoje seria como R$ 15 mil por mês com a exploração dos jazigos. Eu fui um dos últimos presidentes a contar com essa verba", disse Brenol.

Visitas do UOL Esporte

  • Ao Cruzeiro

    Em 2011, o Cruzeiro bateu de frente com a dupla Gre-Nal no Gauchão. Na época, o clube mirava crescimento e apostava em atingir a Série B do Brasileiro em cinco anos. O sonho, porém, não decolou.

    Imagem: Carmelito Bifano/UOL Esporte
    Leia mais
  • Ao cemitério

    Em 2012, na contagem regressiva para o que seria a demolição do Olímpico, que até hoje não aconteceu, a reportagem do UOL visitou o cemitério João XXIII, onde está sepultado o idealizador do estádio.

    Imagem: Marinho Saldanha/UOL Esporte
    Leia mais
Marinho Saldanha/UOL

As arquibancadas seguem lá

Com o negócio feito, o último jogo da Montanha foi após grande festa, com desfile de atletas, banda marcial e celebrações. Em campo, o Cruzeiro bateu o Liverpool, do Uruguai, por 3 a 2. Apesar do triunfo, o cenário foi de lágrimas dos aficionados.

O cemitério foi construído e inaugurado em abril de 1972. E lá seguem, até hoje, as arquibancadas, que ficam no espaço lateral aos jazigos. A escadaria que dá acesso ao cemitério também é a mesma do antigo estádio. Bem como parte do pavilhão social, que foi mantido e reformado para a área administrativa e algumas capelas.

Ao visitar o espaço, a reportagem do UOL Esporte não ouviu relatos de qualquer receio ou estranheza pelas arquibancadas estarem presentes no cemitério, ou mesmo os túmulos estarem, hoje, onde já foi o campo da Montanha.

O Cemitério Ecumênico João XXIII guarda as arquibancadas como memória. Além de servir de local para reflexão e prece de pessoas que visitam o local, as dependências também recebem torcedores antigos do Cruzeiro, que vez por outra prestam homenagens ali.

"Até hoje, quando há eventos do clube, nós, mais antigos, vamos até lá sentar nas arquibancadas", contou Burd. "É bom para recordar o que já se viveu lá", completou Matzembacker.

O túnel, motivo de orgulho e inovador na época, também segue lá, e com portões originais. Hoje o corredor coberto é utilizado como caminho para cortejos nos atos fúnebres realizados no local.

"A arquibancada é um local aconchegante, muitas pessoas ficam sentadas ali porque têm uma boa visão dos jazigos, até para refletir, orar. Muitos não sabem que aqui já foi o estádio do Cruzeiro. O túnel ainda é o original, com os portões da época. Por ali passam os cortejos que saem das capelas de baixo para a área de sepultamento. É o mesmo local pelo qual entravam os jogadores", contou Flavia de Barba, gestora do cemitério.

Tombado pelo patrimônio histórico de Porto Alegre, o local não pode sofrer modificações drásticas. Os colaboradores, ao serem contratados para trabalhar lá, são informados de toda história da Associação Cristã de Moços e também da Montanha. "Todos daqui sabem que já foi um estádio", contou a gestora.

Prestes a completar 50 anos, o cemitério prepara um resgate histórico para rever detalhes de sua transformação. Ao invés de torcedores, a vegetação que cresce na construção mantida de pé e bem cuidada divide espaço com um gato preto, que descansa por vezes nas arquibancadas do cemitério com contornos de estádio.

Túnel e portões da antiga Montanha

Divulgação/Cemitério João XXIII Divulgação/Cemitério João XXIII
Reprodução

'Jazigos' ajudaram a reforçar o elenco

Com o dinheiro recebido na comercialização de jazigos, o Cruzeiro se reforçava com alguns nomes. O percentual serviu, por exemplo, para contratação do goleiro Claudio Leite, que defendia o São José-RS. Na ocasião, o Estrelado pagou preço referente a 'seis jazigos' para contratar seu reforço.

Marinho Saldanha/UOL

Cruzeiro, um sobrevivente

Muitos definem a venda do estádio da Montanha como primeiro passo do declínio do Cruzeiro. Se o clube no passado bateu de frente com Inter e Grêmio, e possuía times em várias modalidades (basquete, vôlei, judô e boxe), depois de perder sua casa a realidade mudou completamente.

O time chegou a se licenciar por alguns anos, já que não tinha estádio para atuar ou verba para se manter. Em 1974, foi convidado pela CBD para participar do Campeonato Brasileiro, mas não pôde aceitar, pois estava de portas fechadas.

Enquanto isso, ergueu — na área recebida que "encolheu" — o estádio pequeno que seria utilizado para treinos, imaginando levantar também a casa para 35 mil pessoas. O nome dado ao campo anexo foi 'Estrelinha' — o estádio seria o 'Estrelão'.

Mas, com dificuldades financeiras, o clube se obrigou a vender parte do terreno que possuía, e o 'Estrelinha' virou 'Estrelão' (na foto acima), casa do time até 2012, quando também foi vendido para uma construtora.

Após o negócio, o Cruzeiro comprou uma área na cidade de Cachoeirinha, na região metropolitana de Porto Alegre, e lá construiu um novo estádio, a moderna Arena do Cruzeiro (estádio Dirceu Castro), com 16 mil lugares, onde atua hoje em dia.

O clube se perdeu. Com a grandeza do que veio, pensava em fazer um estádio maior. Mas a área foi tomada por invasões. O clube precisava manter um bom time e fazer a construção, obra, preservação, e muitas direções não souberam lidar com isso. O time se enfraqueceu muito."
Armando Burd, jornalista e testemunha dessa história.

O Cruzeiro, recentemente, chegou a fazer boas campanhas na elite do futebol gaúcho, mas atualmente disputa apenas a Série A2 do Estadual.

+ Especiais

Rosane Marinho/Folhapress

Morte de Pai Santana completa dez anos, mas folclórico personagem segue vivo para vascaínos.

Ler mais
Marcus Steinmeyer/UOL

Pai do meia Willian fica famoso no Corinthians e agora sonha em entrevistar ex-presidente Obama.

Ler mais
Bruna Prado/UOL

Promessa que chegou ao Palmeiras com Patrick de Paula hoje se vira entre a cozinha e a várzea.

Ler mais
Darlan Vídeos/Flamengo de São Pedro

Time feminino no interior gaúcho une sonhos de indígenas e agricultoras no campeonato estadual.

Ler mais
Topo