Contra os matadores de sonho

Autor do gol do título do Athletico-PR na Sul-Americana, Nikão abre o jogo sobre alcoolismo e noitadas

Nikão, em relato a Eder Traskini Do UOL, em Santos (SP) Pedro H. Tesch/AGIF

Eles estão por toda parte. Você não precisa se esforçar, em toda esquina você encontra um. Acima do bem e do mal, apontam dedos, aumentam falhas e, sobretudo, não acreditam que você pode superar tudo aquilo. São os matadores de sonhos, e eu vou sempre lutar contra eles.

Sabe, eu já fui um viciado. Já ouvi muita coisa e rodei bastante antes de me encontrar. Eu sabia que era pro meu próprio bem, mas tinha discussões diárias com o Cesinha, meu descobridor e um pai pra mim.

Eu tive o mesmo problema em todos os clubes que passei: bebida, mulher e noitada. Quando eu cheguei ao Athletico, em 2015, tiveram que apagar a postagem da minha contratação cinco minutos depois de publicada, tamanha foi a repercussão negativa. Os matadores de sonhos estavam agindo.

Eu estava desacreditado, acima do peso e precisava mudar muita coisa na minha vida, principalmente minha conduta como homem, como pessoa e como atleta. Reconhecer isso foi o primeiro passo.

A partir daí eu procurei ajuda. Minha esposa me auxiliou demais, não me julgou e me estendeu a mão.

Se é tão fácil encontrar matadores de sonhos por aí, o contrário acontece quando você procura quem te incentive. Às vezes você roda a cidade inteira e não acha alguém que te estimule a alcançar seus objetivos de vida.

E é isso que eu quero ser. Quero proporcionar isso para outras crianças que sonham como eu sonhei um dia. Eu já lidei com os matadores e venci. Só por ter chegado até aqui, eu sou mais que um vencedor.

Contra os matadores de sonhos, eu serei sempre o incentivador.

Pedro H. Tesch/AGIF
PABLO PORCIUNCULA/AFP

Herói do título da Sul-Americana

Aos 28 minutos do primeiro tempo da grande decisão da Copa Sul-Americana, neste sábado, o lateral Aderlan, do Red Bull Bragantino, furou. A bola ficou com Terans, uruguaio do Athletico-PR. Ele chutou, mas o goleiro do time paulista, Cleiton, defendeu. Aí apareceu Nikão. Maior símbolo do elenco do Furacão, ele acertou um voleio no rebote para fazer 1 a 0. Foi o gol do título para o Athletico e mais uma coroação para o personagem da história que você está lendo.

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Gabriel Machado/AGIF

Memórias de um viciado

O vício te controla.

Você sempre acha que está no controle. Você pensa que pode parar quando quiser. Mas não é assim que acontece. As coisas acontecem sem que você perceba e, quando você vê, já desandaram.

Eu saí de casa muito cedo e fui para Mirassol para jogar futebol. Ali, no alojamento, você convive com muita gente, muitos atletas. Eu não sei dizer ao certo como isso começou. Você bebe um gole aqui, outro ali em outro lugar, sem parar pra pensar.

Quando eu vi, não conseguia ficar um dia sem beber. Eu tentava, juro, mas não conseguia. O vício já estava me controlando. Chegou um momento em que eu jogava apenas para sustentar ele: o vício em álcool.

Mesmo depois de terem que apagar a postagem da minha contratação no Athletico, eu ainda vivi essa vida por seis meses. Até que chegou um momento em que eu finalmente entendi que ou eu parava e tomava um rumo na vida ou minha carreira seria dali para pior.

Até esse momento, o Nikão era o mesmo que passou por outros clubes: cabeça fraca, "Maria vai com as outras" e sem o futebol como prioridade. Eu sabia que tinha potencial pra jogar em qualquer equipe do Brasil, mas não era meu foco.

Eu cheguei ao Athletico acima do peso, totalmente desacreditado por todos. Deus me deu mais uma oportunidade, e eu entendi de uma vez por todas que jogar no Athletico era minha última chance.

E foi aí que tudo mudou.

Quando cheguei em Curitiba, eu escolhi o meu primeiro apartamento por um barzinho que tinha dentro dele. Apelidei de 'barzinho do Nikão'. Ali tinha todo tipo de bebida, e toda vez que eu passava na frente tinha que tomar algo.

Nikão, jogador do Athletico Paranaense

João Vitor Rezende Borba/AGIF João Vitor Rezende Borba/AGIF

Sete anos sem álcool

Em todos os lugares que passei antes de chegar aqui, eu tive o mesmo problema. Era muita bebida, muita mulher - que o futebol proporciona. Eu sempre começava muito bem, mas sempre faltando três meses pro fim da temporada eu caía de rendimento.

Eu não entendia as coisas como entendo hoje. Eram muitas noites de sono perdidas devido a essa vida totalmente errada que eu levava. Como eu era muito novo, meu corpo ainda segurava mais a onda. Hoje, se eu perco uma noite de sono preciso de dois dias pra me recuperar e jogar na intensidade que o futebol exige, e olha que só tenho 29 anos!

Eu entendi que para sobrar nos jogos eu dependia, sim, da minha intensidade nos treinos. Minha esposa me estendeu a mão e, com o apoio dela e de Deus, as coisas foram acontecendo.

Não foi do dia pra noite. Envolveu muito choro, muita lágrima e muito suor. Eu praticamente não conheci meu pai, perdi minha mãe, meu irmão e minha avó muito cedo. Só que muita gente me ajudou, eles sabem quem são, como o Carlos Roberto e a dona Rosane lá em Mirassol.

Um certo dia eu consegui parar e falar: a partir de hoje, nunca mais coloco álcool na boca. Hoje consigo olhar pra trás e ver que todo esse esforço valeu a pena.

Isso aconteceu há sete anos. Hoje, estou liberto e através da minha história posso ajudar pessoas que enfrentam o mesmo problema, o mesmo vício.

Esses dias mandei mensagem para minhas tias falando o quanto eu queria que minha mãe e minha avó estivessem aqui, sabe? Estivessem aqui hoje para poder ver tudo isso que estou vivenciando.

Nikão, jogador do Athletico Paranaense

Reprodução
Nikão (à esquerda na foto) na época em que integrava a base do Mirassol-SP

O Cruzeirinho

Eu não sei de onde veio o apelido Nikão, mas eu sempre fui conhecido assim, desde o Cruzeirinho. Era um campo lá na Vila Exposição, onde cresci em Montes Claros-MG. Lá tinha muito cruzeirense, então o time de várzea tinha esse nome.

Desde muito novo eu sou completamente apaixonado por esse esporte e, pra estar mais perto, ficava ali de gandula nos jogos. Durante os intervalos, eu sempre pegava uma bola e entrava no campo pra chutar.

Um dia, um amigo meu chamou pra jogar e falou que tinha um olheiro do Mirassol pra me ver. O nome dele era Cesinha e eu nem podia imaginar que a partir dali começaria uma história de pai para filho em nossas vidas.

Ele me levou para morar com ele, me filmou e mandou o videocassete, a tecnologia da época, para o Carlos Alberto, do Mirassol. Antes disso eu cheguei a jogar em dois times chamados Bioclube e Casimiro.

O Carlos Alberto gostou de mim, me chamou para ir para Mirassol. Eu fui, depois voltei para Montes Claros e, posteriormente, fui novamente e fiquei. Foi aí que começou um novo momento na minha vida, o início dessa carreira no futebol, com ele e a dona Rosane me dando todas as condições para minha formação como homem e como atleta.

Robson Mafra/AGIF

Segundo pai

Eu vi meu pai uma vez só na minha vida. Eu era muito pequeno e não me lembro dele. Eu perdi minha mãe e meu irmão muito cedo, também. Foi minha avó quem me criou a maior parte do tempo. Então, quando o Cesinha apareceu na minha vida, foi como um pai pra mim.

Ele não só me levou para morar com ele, como brigou muito por mim e também comigo. Eu sei que não foi fácil pra ele. A gente tinha discussões diárias, principalmente durante o período em que meu vício em álcool estava descontrolado.

Nessa época, eu sabia que as coisas que ele falava pra mim eram pro meu próprio bem, mas eu ia fazer o quê? Eu era viciado e não adianta brigar com um viciado: ele vai virar a esquina e vai fazer de novo. É um vício, entende?

Quando eu mudei para Curitiba e casei, minha esposa sempre foi de orar muito por mim, assim como era o Cesinha e a esposa dele. Eu acho que ele tinha cansado, sabe? Foram muitos anos nesta verdadeira batalha comigo. Mas eu sempre falo: tudo no tempo de Deus.

Pra tudo existe um propósito, entende? Quem sabe se tudo isso não tivesse acontecido, eu não estaria aqui hoje podendo levar tudo aquilo que vivi e inspirar outras pessoas a lutarem contra seus vícios. Hoje, estou feliz e o Cesinha está feliz. É um cara que tenho como pai, a esposa dele como mãe e seus filhos como irmãos. Sou muito grato a Deus por ter eles na minha vida.

Vendedor de coxinha

O maior trabalho que eu dava pra minha avó na Vila Exposição era por causa do futebol. Eu queria sempre estar na rua jogando e eu era muito atentado, não deixava ninguém em paz. Mas eu nunca gostei de coisa errada.

Eu tinha isso na minha frente todos os dias, todos os tipos de situações ruins que você pode imaginar. Perdi amigos para o tráfico. Alguns se foram muito novos devido a essa vida errada, outros estão presos ou ficaram com alguma sequela.

Eu sempre prezei pelas coisas certas, queria dar orgulho para meus familiares e a maneira de fazer isso era através do futebol. Hoje, posso ver o brilho no olhar deles sabendo que estou no caminho certo.

Minha avó era aposentada e cuidava de todos os netos. Ela gastava quase todo o dinheiro pra nos alimentar e sempre fez isso com muito amor.

Naquela época, para ajudar em casa, eu vendia coxinha, capinava lote mesmo muito novo para poder ganhar um trocado, nem que fosse para comprar pão no outro dia cedo ou uma mistura para ajudar no almoço.

Eu me emociono ao lembrar de tudo isso, mas me emociona ainda mais poder olhar no espelho e ver onde estou hoje. Saber que podia ter seguido vários caminhos errados e ainda assim ter escolhido o futebol.

Hoje, posso dar uma palavra de incentivo para aqueles que passam diariamente pelo que passei, me sinto na obrigação de ajudar e procuro sempre estender a mão para aqueles que precisam.

Jason Silva/AGIF
Reprodução/Instagram

Futuro entre o Athletico e o exterior

Eu não vou assinar um pré-contrato. Eu sei que eu poderia, mas não. Meu vínculo com o Athletico vai até 31 de dezembro deste ano, mas essa ligação é muito maior do que um contrato, uma data. Eu tenho uma gratidão enorme ao Athletico, um verdadeiro amor por essa camisa, por essa instituição, por essa torcida e eu quero desfrutar disso até o fim, um dia de cada vez.

É um clube que me deu todas as oportunidades que talvez eu nem merecesse, que acreditou em mim quando ninguém mais acreditava, e eu vou terminar meu ano honrando essa camisa. Eu sempre digo que o futuro a Deus pertence.

Depois do fim da temporada e, se merecermos contra dois times fortes, com mais duas conquistas no currículo, aí eu vou sentar com o presidente e ver o que é melhor para ambos os lados.

Eu não escondo que tenho essa vontade de jogar em outro país, outra cultura tanto pra mim quanto para os meus filhos. Mas sou um cara muito pé no chão e divido todas as minhas decisões com a minha família. Eles são o mais importante.

Não importa se o clube interessado em mim é muito bom, médio ou nem tão bom assim: eu vou para onde minha família se sentir feliz. Onde couber eles, me caberá também.

É assim que pensa esse novo Nikão, aquele que agarrou a chance que teve e renasceu no Athletico.

Thiago Ribeiro/AGIF

Quem é Nikão

Nikão é meia-atacante do Athletico-PR que soma mais de 300 jogos pelo Furacão. Ele chegou ao clube em 2015 depois de rodar muito pelo Brasil, sempre com status de promessa. Antes do Athletico, Nikão passou por Mirassol, Santos, Palmeiras, Atlético-MG (onde se profissionalizou), Vitória, Bahia, Ponte Preta, América-MG, Linense e Ceará. Foi e ainda é protagonista do time paranaense nas principais conquistas recentes da história do clube, como as Copas Sul-Americana de 2018 e 2021 e a Copa do Brasil de 2019. Para conquistar os dois canecos novamente. O Furacão também está na final da Copa do Brasil —contra o Atlético-MG nos dias 11 e 14 de dezembro.

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