Fera ferida

Rafaela Silva volta aos Jogos Pan-Americanos em busca do ouro que falta em sua carreira

Demétrio Vecchioli Colunista do UOL, em São Paulo Ricardo Borges/UOL

Rafaela Silva já era uma atleta de seleção brasileira, mas de repente sumia no meio do treino. Bicho pegando no tatame, em atividades com judocas do mundo todo, mas cadê a Rafa? Era procurar no vestiário, e lá estava ela escondidinha, desinteressada.

Valia a máxima de Didi: "treino é treino, jogo é jogo". Mais do que isso: para funcionar, o treino precisava ser jogo. "A fulaninha ali disse que vai te meter a porrada", inventava alguém da comissão técnica. Aí ela se interessava.

O oposto também funcionava. Muitas vezes, já no topo do mundo, foi inscrita para competir um evento regional qualquer, contra meninas muito mais fracas, para que o jogo servisse como treino.

Porque só há uma coisa que Rafaela goste mais de fazer no mundo do que competir: ganhar. Treino de judô demanda cair, e o negócio dela sempre foi derrubar.

Daqui a menos de duas semanas, Rafa vai atrás do título do Pan, único que ainda não tem. Em 2019, venceu o torneio em Lima, mas perdeu depois a medalha por doping. Recebeu a pior punição possível: ficar sem competir.

Mas o pesadelo que roubou noites e mais noites de sono acabou. Agora é tirar o tempo perdido e voltar a sonhar. A fera, ferida, está de volta.

Ricardo Borges/UOL

Faísca

"A Rafaela sempre está mordida", explica a psicóloga Nell Salgado, que faz parte da equipe da judoca como coach esportiva e da vida dela como fada madrinha.

"Ela trabalha muito isso dentro dela, de alimentar essa raiva. Ela se conhece, se percebe, ela sabe o que faz ela melhor. Ela tem um bichinho dentro dela, e ela mesmo o alimenta, é surreal", diz.

Ney Wilson, que foi coordenador técnico da seleção durante quase toda a trajetória de Rafaela no alto rendimento até virar diretor do COB no ano passado, avalia que a judoca é movida a desafios, mas ressalta que a palha não pega fogo sozinha. É preciso jogar uma faísca.

"Quando você joga para ela que aquilo ela não vai conseguir, é quando você alcança a melhor performance dela, consegue que ela ande como ela deve andar, a 110%. Ela é vaidosa, mas vaidosa enquanto atleta, quer sempre ser a melhor."

Ricardo Borges/UOL Ricardo Borges/UOL

Inteligência

Rosicleia Campos, hoje técnica dela no Flamengo, e antes sua treinadora na seleção, define Rafaela como "superação pura", mas diz que o que faz da campeã olímpica uma atleta muito acima da média é sua inteligência.

"Pensa numa inteligência competitiva, ela tem. É normal o atleta analisar as lutas dos seus adversários. Mas ela sabe tudo das rivais de todo mundo. Ela tem HD interminável, tem uma capacidade cognitiva acima da média. Eu, Rosi, tenho expertise no feminino. Se eu vou comentar uma luta do masculino, eu preciso antes estudar, aprender. Ela transita com tranquilidade. Esses dias ela estava na frente da TV comentando ginástica artística com toda a propriedade".

Ney Wilson percebeu isso muito cedo. "Ela sempre foi muito inteligente, muito. Muito acima da média em termos de leitura de luta, que é uma dificuldade que os jovens atletas têm. Acabou a luta, ele viu uma coisa, mas não viu o que o treinador viu. A Rafaela sai da luta e vai repetir o que o treinador vai falar. Sempre foi assim. Ela talvez seja a atleta mais inteligente lutando que eu conheço."

Aqui, vale um parêntese: Ney Wilson conheceu todos os judocas brasileiros dos últimos 30 anos, no mínimo. E os adversários deles.

Ela sempre foi muito inteligente. Muito acima da média em termos de leitura de luta, que é uma dificuldade que os jovens atletas têm"

Ney Wilson, Diretor do COB

Atitude

A soma dessa inteligência, de um perfil agregador, e de resultados que a tornaram referência para os mais jovens, fizeram com que Rafaela, aos poucos, se tornasse uma liderança dentro do judô.

"Ela é agregadora, ela é amiga, ela é fiel. Às vezes ela é tão amiga que acaba comprando o barulho dos outros e acaba desfocando do dela", avalia Rosicleia.

A treinadora guarda como um momento inesquecível da relação entre elas quando, logo após Rafaela ser bicampeã mundial, em 2022, juntou o time e deu um treinamento de nage komi, em que um grupo de judocas se reveza deixando o corpo para um deles aplicar golpes.

"Ela foi a primeira a cair para todo mundo. Ela podia ficar ali no cantinho, mas foi dar o exemplo. Isso é ser campeã. Não é subir no pódio, é atitude, é no dia a dia, ali onde ela não é a Rafaela Silva, onde ela é a Rafa".

A treinadora, que passou a trabalhar diariamente com a judoca depois que ela foi contratada pelo Flamengo, em 2021, conta nos dedos as vezes em que Rafaela chegou atrasada a um treino desde então, sempre por outros compromissos profissionais.

"Ela amadureceu muito, sabe da necessidade dela de treino, sabe o que precisa treinar, quando ela pode relaxar um pouco mais", opina Ney Wilson. "Ela consegue identificar de uma maneira muito clara que é uma liderança, que não é uma imposição. Ela é a primeira a se apresentar para qualquer necessidade da equipe. Precisa comprar gelo? É ela quem se oferece para ir comprar. Ela é muito equipe, faz sete lutas num dia e no outro precisa aquecer e ela está lá. Isso ganhando ou perdendo."

David Finch/Getty Images David Finch/Getty Images

Foco

A menina que ficava dois dias trancada quando perdia, sem falar com ninguém, se tornou uma mulher que aprendeu a virar logo a chave após as derrotas. Não sem tirar delas lições, e engolir os bichinhos que vão alimentar a fera na próxima competição.

"Ela tem uma leitura impressionante. Sabe onde ela foi bem, onde falhou, o que aconteceu na competição", diz Nell Salgado. "Isso dá a ela a capacidade de se reinventar, saber sair da adversidade e encontrar o caminho da solução."

A coach explica que Rafaela é "focada no que vem", no que ela pode conquistar. E ela quer muito o título do Pan, que até conquistou em 2019, mas perdeu no tribunal antidoping.

Em busca do ouro que falta, terá de lidar com mais uma adversidade: a ausência das melhores do mundo. As duas líderes do ranking são canadenses, mas nenhuma delas estará no Pan. Tomando o ranking como referência, a principal ameaça é uma norte-americana, 30ª da lista, enquanto a brasileira é quarta.

É exatamente quando as coisas ficam fáceis que Rafaela tropeça. "Eu prefiro ela ligada, acesa, o tempo todo pilhada. Às vezes ela dá umas relaxadas, dá uma desligada, não aquece como deveria se não está sendo desafiada. Se deixar ela acomodada, os riscos aumentam muito", avalia Ney.

Ela tem uma leitura impressionante. Sabe onde ela foi bem, onde falhou, o que aconteceu na competição. Isso dá a ela a capacidade de se reinventar, saber sair da adversidade e encontrar o caminho da solução"

Nell Salgado, Coach esportiva

Sofrimento

Entre os muitos ingredientes que podem ser adicionados à receita para motivar Rafaela, um é tabu: o doping. Não porque não sirva de estímulo, pelo contrário, mas porque ela não precisa ser lembrada de tudo que sofreu. As feridas talvez nunca se cicatrizem.

Ney Wilson foi o responsável por contar a Rafaela, durante o Mundial de 2019, sobre o resultado positivo do teste que ela havia feito no Pan. "Eu sofri um bocado, me doeu, eu fiquei muito para baixo durante um bom período. Mas com certeza o que eu senti ela deve ter sentido mil vezes."

Todas as pessoas com quem este repórter já conversou sobre o assunto repetem o que me disse Flávio Canto quando o procurei para confirmar a notícia, quatro anos atrás, e ele foi pego de surpresa: "Rafaela toma todo o cuidado do mundo, não bebe nem cerveja, só consome o que é prescrito pelo meu nutricionista".

Quatro anos depois, Rosicleia põe mais do que a mão no fogo pela atleta. "Eu entro inteira numa fogueira", diz. "Pessoalmente, eu acho a condenação dela um absurdo. Ela sempre foi muito cuidadosa, por isso minha revolta", continua, com uma revolta já ressentida.

"O meu sentimento, Ney falando, é que foi muito injusto. Não foi uma coisa que ela realmente tenha usufruído para melhorar a performance. Para mim ela não usou", opina o diretor do COB.

IJF  IJF

Volta por cima

Não cabe aqui julgar de novo Rafaela. Inocente ou não, ela já foi julgada pelas esferas competentes, e suspensa inicialmente por dois anos pela Federação Internacional de Judô (IJF), em janeiro de 2020, quando as Olimpíadas de Tóquio ainda estavam marcadas para a data original. Ela recorreu à Corte Arbitral do Esporte (CAS), que confirmou a sentença em dezembro daquele ano.

Foram 16 meses à espera de uma sentença que, mais do que condená-la ou não, a impedia, já provisoriamente, de fazer o que melhor sabe fazer na vida: competir.

"Foi o pior momento da vida dela. A Rafa viveu todas as glórias que um atleta pode viver, e todas as dores que um atleta pode viver. Ela chorou, ela sofreu, mas a gente trabalhou um dia de cada vez. Se a gente olhasse para o futuro, a gente não sabia o que encontraria", conta Nell.

Por ter certeza que era inocente, Rafaela confiava que logo voltaria a competir, o que não aconteceu. O desafio, conta a coach, foi conviver com tamanha ansiedade, o que nem sempre foi possível. "Ela teve dias de dor lacerante", lembra a psicóloga, que muitas, muitas e muitas vezes precisou ir ao encontro da cliente, amiga e filha postiça.

"Mas teve dias que ela conseguiu se distrair. Ela foi correr, fazer MMA, ocupar o tempo dela, para que a gente conseguisse viver esse dia de cada vez até que chegasse o momento de voltar".

Demorou, mas o momento chegou, no segundo semestre de 2021. Desde então, já foi campeã mundial, venceu um Grand Slam e subiu ao pódio em eventos menores. Mas também colecionou derrotas precoces, como a do Mundial deste ano, logo na estreia, para a turca Hasret Bozkurt, em uma luta em que entrou desligada.

Desde então, está com 'ranço' da judoca da Turquia, esperando por uma revanche. À europeia, coitada, só resta torcer para não dar de cara com a fera em Paris.

Ricardo Borges/UOL Ricardo Borges/UOL

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