O padrão sou eu

Campeã do pesado, Beatriz Souza relaciona autoestima ao judô: "Demorou, mas, hoje, mostrar o corpo me orgulha"

JR Duran (fotos) e Talyta Vespa (texto) Colaboração especial para UOL, em São Paulo JR Duran/UOL

A saga para comprar roupas que fujam do estilo "cortina-de-avó" faz parte do dia a dia da judoca Beatriz Souza, 23, desde a adolescência. A jovem atleta tem 1,75 m, pesa 115 kg e conquistou medalha de bronze no Mundial de 2021 —sua primeira medalha em mundiais adultos. O sucesso só foi possível pelo corpo que a escuda.

Bia é a caçula de duas filhas e a única a seguir os passos do pai no judô. Aos 15 anos, deixou a barra da saia da mãe, em Peruíbe, no litoral paulista, para encarar uma rotina extenuante em São Paulo: acordava às quatro, cruzava a cidade de trem, metrô e ônibus para chegar à escola às sete. Ao meio-dia, precisava estar no clube para treinar. Ficava por lá até a noite, quando voltava para a república em que morava com mais 14 atletas.

O dia a dia exaustivo fez com que Bia sequer percebesse a chegada da vida adulta e de novos interesses que foram surgindo. De repente, viu-se se comparando a amigas magras e escondendo o corpo vitorioso debaixo de panos gigantescos.

O padrão de beleza fora do esporte é o corpo de modelo de marca internacional —e eu não tenho nada dele. Essas meninas não têm um braço a mais, têm uma estrutura corporal que eu jamais teria. Minhas costas são superlargas. Para que eu encontre um sutiã que as comporte, preciso procurar um tamanho enorme —e aí tem bojo demais, falta peito para preencher. E lá vou eu, mais uma vez, tirar o bojo do único sutiã que cabe nas minhas costas".

Beatriz Souza, judoca, top 10 do ranking mundial.

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Corpo de Atleta, com JR Duran

Os Jogos Olímpicos de Tóquio, adiados pela pandemia, começam no dia 23 de julho. Durante duas semanas, você verá os melhores atletas do mundo competindo por medalhas. E nem todos esses melhores atletas do mundo tem o corpo que você imagina ser o ideal, que se vê nas capas de revista, magros e com tanquinho. O corpo perfeito de um atleta é aquele que o torna o melhor naquilo que ele faz. E pode ser alto ou baixo, longo ou curto, magro ou gordo.

Para mostrar cinco corpos perfeitos que desafiam o estereotipo que a sociedade definiu como ideal, o UOL Esporte e o fotógrafo JR Duran contam a história de cinco atletas que fogem do padrão de beleza imposto diariamente a cada um de nós. Eles compartilham como a força e o peso são, na essência, o que os transformou em campeões. É esse corpo —já tão criticado— o instrumento de resistência e vitória desses esportistas e deveria ser também o motivo de orgulho para todos que não se veem representados pelo padrão. Eles são foda porque são gordos.

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Um mundo à parte

Beatriz começou a praticar judô aos sete anos —era uma criança espevitada, cheia de energia que enlouquecia os pais. "Eu era uma criança bem gordinha, uma bolotinha. Mas meus pais nunca me diminuíram por isso, pelo contrário. Minha saúde sempre foi excelente, então sempre me incentivaram a amar meu corpo", relembra.

"Em categorias de peso específicas no judô, existe uma pressão grande em dias de luta. Atletas passam dias sem comer, fazem esforços insanos. E eu sempre gostei de comer, né? Então, minha mãe sempre me dizia: 'Se for para viver esse sonho, viva sem se matar desse jeito'".

Na adolescência, a atleta viveu uma espichada rápida —aos 12 anos, já calçava 39. Emagreceu, mas as características genéticas sempre estiveram ali: Beatriz era uma garota grande. "Conforme os treinos começaram a ficar pesados, eu comecei a ganhar massa, a ficar maior. A força passou a fazer parte do meu físico, e isso foi ótimo", afirma.

O lado positivo do crescimento só foi reconhecido por Beatriz há pouco tempo. Ainda quando mais jovem, se comparava com colegas magras o tempo todo, e tentava esconder as características que a ajudavam a vencer as competições. "Quando eu era adolescente, meu maior problema era achar sapato. Eu era alta e magra, tinha um braço grande, uma perna grande, calçava 39/40, mas era esguia. A partir do momento em que comecei a treinar mais intensamente, criei massa e fui ficando maior. Então, começou a luta para achar roupa."

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Esporte em jogo

Beatriz relembra que, pela frustração de não se enquadrar no que era socialmente aceito, questionou algumas vezes até mesmo sua relação com o esporte. "Me perguntei várias vezes se valia a pena ter esse tamanho. Já deixei de usar uma roupa que eu queria usar porque achei que diriam que eu estava gorda".

A gordofobia se apresentava, mesmo que sutilmente, em ambientes sem outros atletas. Quando cercada por colegas, Bia explica, mesmo que de outras modalidades, não havia sequer questionamentos. "Quem é do esporte sabe que o nosso corpo é nosso instrumento de trabalho; que é com ele que a gente conquista o que tem de conquistar".

Ir para um lugar com atletas é uma coisa. Estar em um ambiente com pessoas que não são do esporte é outra —e bem pior. Porque olham, o tempo todo, para o tamanho do meu braço; uma vez, estava no metrô, e um homem disse que meu braço era maior do que o dele. As pessoas encaram as minhas costas. É difícil lidar com essas coisas."

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Virada de chave

Com o tempo, a judoca entendeu que o braço, as costas, os pés e as pernas são o que possibilita vitórias impressionantes. O esporte a ensinou, conta, que tem muito de certo com ela: "Quando eu ainda aguento ir para a balada, coloco a roupa que eu quero. Quem não gostar, que vá embora. Se estou me sentindo bem, vou e fim. Antes, era difícil. Eu me cobria toda porque tinha vergonha. Agora, o mundo mudou e eu vou mostrar meu corpo. Foi uma chave que eu virei. Hoje, o padrão sou eu".

Depois que você se aceita, o mundo é outro. Tudo muda. Ninguém está na minha pele para saber o que eu sinto: demorou, mas, hoje, mostrar meu corpo me orgulha."

Quem ajudou Beatriz a virar a tal chavinha foi uma amiga de infância, que, segundo ela, sempre deu de ombros para os padrões. "Ela sempre usou roupa mostrando a barriga, mesmo sendo maior que eu. Eu via aquilo e achava lindo, mas inalcançável. Queria ser daquele jeito, e comecei a pedir ajuda a ela em relação a roupas. A gente se arrumava junto e saía junto. Foi uma libertação".

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Ganho de peso durante a pandemia

Apesar de não haver limite de peso na categoria 'peso pesado' (desde que o peso mínimo não seja inferior a 78 kg), Beatriz prefere manter os 115 kg, uma vez que, segundo ela, é como se sente forte e ágil durante as lutas. "Por isso, tem um trabalho de controle de peso. Eu tomo suplementos, sigo uma planilha alimentar, tenho um trabalho importante", afirma.

Mesmo com o controle, a atleta afirma que, durante o primeiro ano de pandemia de coronavírus, ganhou muito peso. "Não teve como ficar sem comer, e meu gasto energético diminuiu muito. Eu até tentava treinar em casa, mas nem se comparava com o tipo de exercício físico pesado com o qual estava habituada até fevereiro de 2020", relembra.

"Fiquei ansiosa, comecei a comer pelo descontrole e voltei muito mais pesada do que antes. Precisei fazer uma dieta porque não estava me sentindo confortável lutando com um peso maior do que o peso com que eu costumava competir. No primeiro treino, me senti muito pesada e lenta, e meu estilo de luta não é lento", conta.

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Fogo na rua e tinta no cabelo

Beatriz começou a lutar quando os pais não conseguiam domar a energia de criança. "Eu era daquelas que davam trabalho demais, era muito agitada. Fazia dança, natação, mas continuava botando fogo nas coisas, pintando o cabelo do nada em casa e perturbando os vizinhos. Precisava ocupar todo o meu tempo livre. Me encantei pelo judô já no primeiro treino", conta.

Por causa do esporte, a atleta precisou se mudou de Peruíbe para São Paulo aos 13 anos. "Fui contratada pelo Palmeiras, e meus pais me deram todo o apoio. Eu tinha uma rotina insana: acordava às quatro, pegava um trem na Lapa, zona oeste de São Paulo, onde morava; depois, o metrô e, então, um ônibus até a escola, que fica na zona leste. Minha aula começava às sete. Depois, corria para o clube, treinava durante toda a tarde; chegava em casa à noite e precisava cozinhar, não tinha nada pronto", relembra.

Senti muita falta dos meus pais nesse período. Foi assim por um ano, até que os convenci a me matricularem em uma escola pública perto de casa. Facilitou muito a minha vida. O tempo só me garantiu ainda mais que eu queria, mesmo, era viver do esporte."

Beatriz demorou para ter noção de que poderia chegar a uma Olimpíada. O momento quase chegou: Beatriz lutou até o último momento pela vaga brasileira na categoria pesado, mas quem vai a Tóquio é a veterana Maria Suelen Altheman, 32 anos, 3 medalhas em Mundiais, um título mundial militar e 11 medalhas pan-americanas.

A Bia cabe o posto de maior revelação do judô brasileiro no último ciclo olímpico. Nos últimos cinco anos, conquistou uma medalha de bronze em Campeonatos Mundiais, outro bronze nos Jogos Pan-Americanos de Lima-2019 e cinco medalhas, incluindo duas de ouro, em Campeonatos Pan-Americanos de judô. Nada mau para quem começou a disputar competições entre adultos apenas em 2016.

"Tomei um pau nas primeiras competições, eu era novinha, pensa? Nunca apanhei tanto na minha vida. Mas não desisti. Fui treinando, melhorando, e, quando me dei conta, estava em 22º no ranking internacional. Ali, caiu a ficha de que era possível. Todos os dias, treino para que, de fato, seja."

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