Argentina perde final em campo e se prepara para guerra em ruas e tribunais
A Argentina passou o fim de semana em frente à TV, esperando a decisão. Mas ela não chegou, nem no campo e nem no tapetão. River Plate e Boca Juniors não pisaram o gramado e ninguém arrisca dizer quando ou mesmo se pisarão. A final da Libertadores 2018, para muitos a mais esperada da História, continua assim, em espera. Uma final ainda sem um fim.
A Conmebol confirmou nesse domingo nova suspensão da partida, atendendo a um pedido do Boca. Com as pedradas no ônibus do time, as janelas quebradas e o gás de pimenta, vários jogadores se feriram ou se intoxicaram. Ficou para a próxima terça (27) uma reunião para definir nova data de jogo. Saíram os jogadores, entraram em cena os presidentes e advogados dos clubes. Não há data nem confirmação de que o novo jogo seria mesmo no Monumental. Está tudo em aberto. A guerra em campo ficou para os tribunais.
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O único que se sabe é que a partir de quinta-feira a capital da Argentina entra em regime especial de segurança para receber a reunião de cúpula do G20, grupo de países mais poderosos do mundo. Todas as forças policiais estarão voltadas para o encontro, são esperados confrontos com manifestantes, serão bloqueadas autopistas e avenidas, repartições públicas deixarão de funcionar, a ministra de segurança chegou a aconselhar os portenhos a deixarem a cidade. Guerra nos tribunais e, a partir desta semana, por mais que até o presidente Mauricio Macri tenha tentado evitar os eventos ocorrendo paralelamente, também nas ruas.
A final da Libertadores ganhou contornos surreais. Depois desta deste confronto, com os dois jogos adiados por diferentes motivos, as definições de “folclore” no futebol sul-americano foram atualizadas.
Torcedores desanimados
“É quase ficção científica o que tá acontecendo”, diz o comerciante Francisco Palacio, de 45 anos, torcedor do River. Francisco esteve com seu filho ontem na arquibancada do Monumental durante cerca de seis horas, debaixo de sol e incertezas. “Foi uma vergonha, nem mesmo informações básicas foram passadas pra gente direito. Ficaram nessa de ‘adia – não adia’ o jogo, e a gente lá, esperando. Era óbvio que tinha que suspender a partida rapidamente”, se revolta.
Para Francisco, as confusões desanimaram o torcedor, que já não encontrará mais a mesma alegria que foram vistas pelas ruas de Buenos Aires antes do jogo. Ele lamenta: “Estávamos a ponto de viver uma das festas mais lindas do futebol mundial, um espetáculo único, que ia marcar a história dos dois clubes para o resto de nossas vidas. O mais triste é isso, ninguém tá falando mais sobre quem vai ganhar, quem vai perder, estamos falando de canetadas, de decisões de escritório. Nos dá muita indignação, irritação e tristeza. É uma vergonha, uma grande vergonha”.
Cristian Panadeiros, de 44 anos, é outro torcedor do River revoltado. Ele também foi ao Monumental com seu filho, de 14 anos, e desconfia que algumas coisas do episódio de ontem estão mal-explicadas. “Estas coisas só acontecem se alguém deixa acontecer. Tem mil exemplos que mostram que, quando os responsáveis querem, isso NÃO acontece”, diz. “Há muitas hipóteses de potenciais geradores desse incidente, desde teorias que envolvem a política nacional até as disputas internas no clube, passando pelas barras bravas, as torcidas organizadas daqui. Considero todas as teorias possíveis”, segue contando. Francisco concorda: “O que aconteceu ontem é uma amostra clara de que o futebol segue sendo controlado por organizações muito complexas, que há vínculos entre as torcidas organizadas, a polícia, os dirigentes.”
Cristian e Francisco ecoam, entre outras possíveis conspirações, as desconfianças de que o episódio teria relação com a apreensão pela polícia, dois dias antes do jogo não jogado, de 300 ingressos e cerca de 10 milhões de pesos – o equivalente a pouco mais de 1 milhão de reais – com pessoas vinculadas com a torcida organizada do River Plate. E que a polícia teria, por algum motivo, “entregado” propositadamente o ônibus do Boca para o apedrejamento dos torcedores rivais.
Teorias se espalham e dividem povo
Do lado oposto ao Monumental, no bairro de La Boca, essas teorias sobre razões ocultas também se propagam. “Tava tudo avisado! O presidente do River avisou: ‘a barra não vai entrar no jogo’. A barra respondeu ‘nós não vamos entrar? Então não vai ter jogo!’ E viram no que deu? Não teve!”, alega com fervor Maximiliano Villafañe, torcedor do Boca de 39 anos, em debate divertido com frequentadores do bar que tem com sua esposa, o El Campeón de La Boca.
Alejandra Silva, a sócia e companheira, também se anima na discussão e compra as suspeitas populares de que há muito lixo debaixo do tapete: “O ônibus nunca passava por aí. A polícia entregou a gente pra torcida deles!”, diz. Ela levanta a polêmica: para ela, o Boca deve ser declarado campeão. “Não tem conversa, têm que dar a taça pro Boca. A gente não é medroso, mas você viu como ficaram os jogadores? Para além dos memes de internet, das piadas, mas foi sério o que aconteceu”.
A torcedora faz menção ao episódio do gás de pimenta, de 2015, em um Boca x River pelas oitavas de final da Libertadores na Bombonera. Naquela ocasião, um torcedor do Boca atirou o gás contra os jogadores do River. A partida teve que ser cancelada, o Boca foi eliminado e recebeu outras sanções. O River seguiu na competição e terminou campeão. “Foi a mesma situação e nos eliminaram com uma canetada. E agora, por que vai ser diferente? Por quê? Por que D’Onofrio é da Conmebol?”, insinua a torcedora, com certa dose de clubismo, citando o presidente do rival e sua influência na entidade que organiza o torneio.
Alejandra é uma exceção. A maioria dos torcedores de ambos os times concorda com a realização da partida. “Tem que jogar, com Pablo Perez ou sem Pablo Perez!”, diz Fernando Arriola, de 42 anos, morador de La Boca e torcedor bosteiro – ou seja, do Boca -, citando o jogador que foi mais prejudicado com o incidente. “Mesmo depois de 2015 não se aprendeu nada, de nenhum dos lados. Vem gente de todos os cantos para ver esse jogo. Foi horrível o que aconteceu. Mas tem que jogar. Isso é futebol, se decide no campo”, afirma.
A duas quadras da Bombonera, alguns amigos também debatem o tema. Melina Flores não tem dúvidas: “Que joguem! Futebol é futebol, eu não perco um jogo, assisto todos, vocês sabem. E futebol é jogado no campo!”, diz a jovem de 26 anos, ganhando o coro dos demais. Jorge Echeverría, o Papito, de 42, trabalha em favelas dando apoio a usuários de crac. Cheio de malandragem na fala, o morador é o mais enfático: “Futebol é futebol, loco. Não pode ser que por alguns violentos destruam a festa. Sou daqui da Boca, fanático do Boca Juniors, loco. Não importa quem ganha, se ganha o melhor ou não. Se ganhar o River, ganhou o River, se ganhou o Boca, ganhou o Boca. Mas que joguem! E que seja uma festa, mas sem violência”, discursa, camisa da Seleção Argentina posta.
Entre eles, o único torcedor do River é Luis Álvarez, o Pato, 36 anos, pedreiro. Nascido e criado na Boca, de pai uruguaio e mãe de Bariloche, Pato abraçou o clube de Núñez na infância, por influência de amigos de família. Ele também quer jogo, mas admite: “Nossa torcida fez uma tremenda besteira. E bem, há culpa da polícia, né, que levou o ônibus aí, onde estava cheio de pessoas sem ingresso. Mas se derem o título para o Boca, não teremos muito o que contestar, essa é a verdade.”
Faz sentido por um lado, talvez por outro não tanto, ou muito pelo contrário. Por todos os cantos, em todas as esquinas, nas ruas, nos bares, nos almoços de família: os portenhos, que são pra lá de chegados numa boa discussão acalorada, estão com assunto pro resto do mês. O que não esconde a vergonha pelo papelão.
Certamente quem melhor resume o sentimento é o senhor Enrique Bernal, de 83 anos, que espera o ônibus 46 debaixo da Bombonera, na rua Brandsen. Nascido num cortiço a poucas quadras do estádio, seu Enrique conta que lembra bem da inauguração do estádio, quando tinha ainda quatro anos. Torcedor de alma do Boca, o velho é simpático e sorridente. Mas fecha a cara quando fala sobre o apedrejamento do ônibus. “Me desculpe a palavra, mas foi uma tremenda cagada. Me deu nojo”, diz, sério. E segue, falando com serenidade: “Foi um tremendo espetáculo que nós demos. E digo ‘nós’ porque me incluo e acho que temos todos que nos incluir pelo que aconteceu. Eu vi jogador aí dizendo isso, dizendo aquilo, que nos entreguem a taça e blablabla. Não é assim”.
Seu Enrique Bernal continua. Para ele, o ocorrido não deve ser debatido numa oposição entre Boca x River, e sim com um olhar sobre eles, os argentinos. Ou talvez nós, sul-americanos. “Há três ou quatro anos, um rapaz fez besteira aqui na Bombonera com gás de pimenta também. Lembro na década de 40, quando os rapazes aqui da nossa torcida armaram uma pesada, invadindo o estádio do Independiente e depois jogando pedaços soltos de calçada, na torcida rival. Enquanto tratarmos essas coisas como se não fossem responsabilidade de todos nós, mas “culpa” dos outros, essas coisas não vão deixar de acontecer.
O 46 passou, o velho sorriu e disse “logo passa outro”. E prosseguiu, portenhamente, a conversa, puxando assunto sobre o time do Boca de 1943. “Vacca, Marante e Valussi; Sosa, Lazzatti e Pescia; Boyé, Corcuera, Sarlanga, Varela e Sánchez. Era um timaço!”, disse sorrindo seu Enrique.
Em Buenos Aires, o povo gosta mesmo é de futebol.
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