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OPINIÃO

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Tive o prazer de conhecer a essência de Ronaldinho Gaúcho

Ronaldinho recebe o prêmio de melhor jogador do mundo em 2005 - Adam Davy - EMPICS/PA Images via Getty Images
Ronaldinho recebe o prêmio de melhor jogador do mundo em 2005 Imagem: Adam Davy - EMPICS/PA Images via Getty Images

11/03/2021 04h00

Conheci muitas pessoas ao longo dos 25 anos que vivi o dia a dia do futebol. Alguns viraram amigos próximos e outros apenas colegas. Mas tive a honra de conhecer a essência de um dos maiores jogadores da história: Ronaldinho Gaúcho.

Muitos sabem sobre a carreira vitoriosa do R10, por ter atuado em grandes clubes do Brasil e da Europa, ter sido campeão mundial pela seleção e eleito duas vezes o melhor jogador do planeta. Porém, pouquíssimos conviveram diariamente com ele fora dos gramados e tiveram o prazer de conhecer a sua família.

O Ronaldo é um cara muito fechado, preza por sua privacidade e foge dos holofotes da mídia e do glamour, e respeito isto. Portanto, dou ainda mais valor por ele ter aberto a porta da sua casa para mim, quando ainda éramos guris. Nos conhecemos na base do Grêmio. Eu tinha 15 anos e ele, 13. Meses depois, ele subiu de categoria e começamos a jogar juntos.

Ronaldinho Gaúcho e Tinga em jogo da base do Grêmio, em 1995 - Reprodução / Twitter - Reprodução / Twitter
Ronaldinho Gaúcho recordou no Twitter foto com Tinga em jogo da base do Grêmio, em 1995
Imagem: Reprodução / Twitter

Nos demos bem logo de cara. Eu tinha um amigo de infância que era primo dele, o Edinho, e que morava na Restinga, bairro humilde de Porto Alegre onde eu fui criado. O Ronaldo costumava ir à Restinga para visitar os tios, mas quem chamava atenção de todos os moradores do bairro à época era o seu irmão mais velho, uma vez que o Roberto Assis já havia se destacado no Grêmio e jogava no Sion, da Suíça.

Andávamos juntos o dia inteiro, até porque ele morava próximo, na Vila Nova. À época, eu o chamava de Nego Dente, e ele me chamava de Peri. Aliás, este apelido que recebi na base gremista me acompanhou até recentemente, pois a Dona Miguelina, mãe do Ronaldinho e do Assis, fazia questão de continuar me chamando de Peri. Infelizmente, ela faleceu há poucas semanas. Isto me abalou, pois tínhamos uma relação muito próxima.

A Dona Miguelina era muito centrada, conhecedora dos detalhes do mundo do futebol. Certa vez, quando recém havíamos sido alçados ao grupo principal do Grêmio, fui sacado do time com a justificativa que o Ronaldo e eu não podíamos jogar juntos porque éramos inexperientes e que não sabíamos marcar. Esta era a visão da imprensa, pois eu jogava como meia-atacante — ironicamente, fui me tornar volante anos depois.

Ronaldinho Gaúcho junto de sua mãe, Dona Miguelina - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Ronaldinho Gaúcho junto de sua mãe, Dona Miguelina
Imagem: Reprodução/Instagram

Certa vez, depois de mais um jogo fora do time, fui à casa do Ronaldinho. Dona Miguelina perguntou o que estava me chateando, e a revelei que aquela situação estava me tirando o sono. Com muita serenidade, ela me disse: "Calma, tu és muito novo. Ainda vais viver muita coisa no futebol, coisas boas virão para ti".

Aquelas conversas me tranquilizavam. Fui criado apenas por minha mãe, mas ela não tinha conhecimento sobre o que ocorria nos bastidores de um clube de futebol. Já a Dona Miguelina tinha uma bagagem sobre o assunto porque já havia passado por situações semelhantes com o Assis.

Presenciei a genialidade e a gana do Ronaldinho logo cedo. Quando ainda estávamos nas categorias de base do Grêmio, treinávamos em dois períodos diários. Logo após a atividade da manhã, íamos almoçar e comíamos um monte — eu não tinha fartura de alimentos em casa. Mesmo com a barriga cheia, o Ronaldo fazia questão de todos os dias ir até o ginásio David Gusmão, ao lado do Olímpico (antigo estádio do Tricolor antes de inaugurar a sua nova Arena).

O ginásio estava passando por reforma e, mesmo assim, jogávamos com os pedreiros que estavam no período de descanso, entre o meio-dia às 14h. Ele num time e eu no outro. Mas havia dias que eu comia demais e precisava descansar, fazer a digestão para o treino da tarde. Mas o Ronaldinho não queria ficar parado. Ele era muito fominha, jogava todas as partidas com os caras. Os pedreiros usavam bota e ele jogava descalço. Aliás, ele sempre preferiu o contato da bola direto com os pés, sem nenhum calçado.

Aos 14 anos, o Ronaldinho já distribuía caneta, elástico, pedalava e driblava qualquer marmanjo que aparecesse na sua frente. Tudo isso que sempre fez com toda a naturalidade, mas nunca com maldade.

Pelo contrário, sempre foi um cara humilde e disposto a ajudar. Lembro que o primeiro agasalho que eu vesti da Adidas foi um presente que ganhei dele, que havia sido trazido da Suíça pelo Assis. Ele sempre mostrou maturidade e foi benevolente, antes mesmo de se tornar profissional.

Vivemos inúmeras experiências juntos. Uma vez o convidei para tomar café, fazer um lanche, em minha casa após os treinos. Quando chegamos na esquina, percebi que havia alguma coisa diferente, porque as luzes das demais casas estavam acesas e só na minha estava meia-luz, ou seja, iluminada por velas. Tentei dar a desculpa que não tinha ninguém em casa para dar meia volta, mas lógico que ele percebeu. Falei então a verdade, que a conta da luz não havia sido paga. Isto aconteceu num sábado.

Já na segunda-feira seguinte, quando nos reapresentamos, a primeira coisa que ele fez foi me chamar para ir num posto bancário localizado no Olímpico. O Ronaldinho pediu para eu ligar para a minha mãe e perguntar o valor da conta de luz porque ele iria pagar. Naquela época, ele já estava se destacando, era convocado para as seleções de base e recebia dinheiro de premiações. E ele tinha apenas 14 anos.

Ronaldinho Gaúcho e Ronaldo Fenômeno jovens, na seleção brasileira - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Ronaldinho Gaúcho e Ronaldo Fenômeno jovens, na seleção brasileira
Imagem: Reprodução/Instagram

Esta alegria e simplicidade, ele sempre carregou para dentro do campo. Ainda no juvenil, presenciei as arquibancadas do Olímpico cheias para ver o Ronaldinho em ação. Muitas vezes os profissionais do Grêmio, que já tinham fama e faziam parte do grupo campeão da Libertadores de 1995 com o Felipão, também iam vê-lo jogar. Muitos não conseguiam repetir o que o Ronaldinho fazia por causa da sua técnica e controle de bola. Na época, ainda na base, ele era mais conhecido que alguns reservas do profissional. Desde de novo já era considerado um fenômeno. Ele era uma atração para o clube.

O Ronaldinho Gaúcho entregava exatamente o que pede o entretenimento no futebol. Os torcedores chegavam mais cedo ao estádio para vê-lo brincar e fazer malabarismo com a bola durante o aquecimento. O R10 fazia valer cada centavo do ingresso. Ele tinha um repertório de jogadas que não vi em nenhum outro atleta. Não vi ao vivo o Pelé jogar nem quero compará-los, longe disso. Mas acredito que as pessoas torciam para a bola chegar nos pés do Pelé, assim como era com o Ronaldinho.

Vejo os craques de hoje serem decisivos ao se destacarem com gols e números. Mas nenhum deles expõe a alegria e o arsenal de lances que o Ronaldinho demonstrava em campo. Com dribles fantásticos e um sorriso largo no rosto, o R10 se divertiu diante de potencias europeias, foi campeão de quase tudo que disputou e ainda foi eleito duas vezes o melhor jogador do mundo. Poucos recordam que foi ele que fez o Barcelona voltar a ser uma potência mundial.

Lionel Messi e Ronaldinho Gaúcho - GettyImages - GettyImages
Ronaldinho Gaúcho e Lionel Messi juntos no Barcelona
Imagem: GettyImages

Este craque que o Ronaldo se transformou não despertava apenas a curiosidade e fanatismo dos torcedores. Por onde passei — seja no Sporting (Portugal), Borussia Dortmund (Alemanha), Internacional ou Cruzeiro —, vários jogadores renomados vinham até a mim para perguntar sobre ele, pois sabiam da nossa amizade de infância.

Aqui no Brasil, o Ronaldo não possui o mesmo respeito que o restante do mundo tem por ele. Talvez pela sua simplicidade. Ao longo da sua carreira, ele nunca chutou o balde com a imprensa, mesmo quando foi criticado em seus últimos anos como profissional aqui no país. O máximo que fazia era responder com um sorriso irônico. Este excesso de humildade talvez tenha sido determinante como a mídia e a torcida o tratou. Ele nunca bateu no peito e bravejou que foi o melhor jogador da sua época. Até poderia, mas não fez.

Apesar de toda a fama e dinheiro que conquistou, o Ronaldinho Gaúcho não mudou a sua essência. Continua sendo um cara simples. O mesmo que eu vi, em 1998, pegar uma bola de meia e fazer balãozinho para alegar crianças com câncer que estavam internadas num hospital infantil. Isto tudo sem alarde para chamar a atenção da mídia.

Essa solidária ainda vive com ele, seja jogando futevôlei ou tocando pagode com os seus amigos. Este amor pelo pagode, aliás, surgiu quando já era profissional do Grêmio. Mesmo quando já estava se tornando famoso, fazia questão de me acompanhar nas rodas de samba na Restinga, onde conheceu os membros do grupo Samba Tri, que ele é padrinho e ajuda nas composições. E até hoje ele é presença constante no bairro.

Apesar de termos nos distanciado ao longo dos anos, como acontece em inúmeras relações no ciclo de nossa vida, mantenho um grande carinho por ele por tudo que vivemos juntos.

Alguns podem estar perguntando: "o Ronaldinho Gaúcho é só flores, nunca fez nada de errado dentro ou fora dos campos"? Lógico que sim, assim como eu, que cometi erros ao longo dos meus 43 anos. Mas quem sou eu para julgá-lo? Deixo as críticas aos demais, que são muitos. Comigo ficam as boas lembranças do craque que conheci ainda piá.

*Com colaboração de Augusto Zaupa