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Voo 3054: por que maior tragédia da aviação brasileira acabou sem culpados

De Ecoa, em São José do Rio Preto (SP) e São Paulo (SP) e com informações da Agência Brasil

27/06/2023 06h00Atualizada em 27/06/2023 16h28

No dia 17 de julho de 2007, o Brasil assistia aos Jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro quando, às 18h48, um avião bateu contra um prédio próximo ao aeroporto de Congonhas, em São Paulo.

No mesmo momento, a professora Carmem Caballero estava em casa, a quilômetros do acidente, e trocou de canal para assistir às imagens de um prédio em chamas pela televisão. A preocupação aumentava durante a transmissão.

A mãe e as filhas de Carmem, a professora Elizabete Silva Caballero e as adolescentes Júlia e Maria Isabel, estavam de férias no Rio Grande do Sul e voltariam para São José do Rio Preto, no interior paulista, no mesmo dia. Antes, fariam uma escala aproximadamente no horário da colisão do avião.

Por desencargo de consciência, Carmem conferiu o número do bilhete e, por um instante, sentiu-se aliviada: os números dos voos anunciados na TV não batiam e, a princípio, as três estariam a salvo. Não havia celular, então, sentou e esperou por um telefonema com a confirmação.

Mas a cobertura televisiva era caótica e, após alguns minutos, uma repórter corrigiu a informação divulgada anteriormente. A aeronave que havia caído era a mesma onde estavam a avó e as duas netas, o 3054 da TAM.

Nesse momento, eu não consigo mais ficar em pé. Carmem Caballero.

Maior tragédia da aviação brasileira

1 - Reprodução/UOL/Pó de Vidro - Reprodução/UOL/Pó de Vidro
Elizabete Caballero, vítima do voo da TAM, foi uma das responsáveis por salvar o rio que dá nome à cidade de Rio Preto
Imagem: Reprodução/UOL/Pó de Vidro

Em 2023, o acidente completa 16 anos. As 187 pessoas a bordo morreram, entre passageiros e tripulação, além de doze pessoas próximas ao prédio, em um total de 199 mortes. É a maior tragédia da aviação brasileira.

O Brasil passava pelo chamado "apagão aéreo" que, entre 2006 e 2007, provocou cancelamentos, atrasos e filas devido a uma "greve branca" de controladores de voo ocorrida após os desdobramentos da queda do avião da Gol, que fazia o voo 1907, em setembro de 2006.

Apesar de acordos em dinheiro fechados entre as famílias, companhias aéreas e fabricantes, nunca houve condenações ou prisões pelo que aconteceu. Não por falta de tentativas. Na época, a imprensa buscava especialistas que apontassem hipóteses, que sugeriam problemas com o tamanho da pista, a pouca área de escape e a chuva que caía no dia. As autoridades e as famílias também tentavam encontrar responsáveis: o governo federal, falha humana ou da aeronave, negligência de representantes de instituições áreas e a desorganização do setor aéreo no Brasil.

Voo da TAM 3054 se choca contra prédio no aeroporto de Congonhas, em 2007

Nos meses seguintes à queda do 3054, protestos foram convocados contra ministros, contra o então presidente Lula (PT), contra líderes de estatais e contra as companhias aéreas em grandes marchas ao redor de Congonhas. Políticos, músicos e apresentadores de televisão apareciam durante as manifestações para dar apoio e surfar na onda de indignação misturada à sensação de luto coletivo.

Entre os manifestantes estava o empresário Christophe Haddad, pai da estudante e vítima Rebeca Haddad, então com 14 anos. "Dessa vez, os culpados vão para a cadeia", bradava no microfone, em 2008. Haddad dizia que a busca por lucro havia matado a filha, que inocentemente só desejava visitar a avó. (Como era julho, adolescentes, crianças e famílias inteiras viajavam para aproveitar as férias escolares).

Atualmente, Christophe atenuou a opinião. "Ninguém, em sã consciência, acorda de manhã e pensa em causar um acidente", diz ao telefone para Ecoa. Ele é vice-presidente da Associação Brasileira de Parentes de Vítimas de Acidentes Aéreos (Abrapavaa) e, desde então, oferece palestras sobre apoio psicológico a familiares de tragédias e já foi palestrante para a própria Latam (a antiga TAM).

É complicado culpar alguém criminalmente: você teria que realmente ter algum indício que alguém violou alguma lei ou norma área deliberadamente que causasse o acidente. Isso nunca foi provado porque, aparentemente, não houve. Christophe Haddad.

Ex-aviador, Chris é solidário com os envolvidos em um desastre aéreo, mas nem todos pensam desta maneira sobre o desfecho da tragédia do 3054.

O engenheiro químico Archelau de Arruda Xavier, que perdeu a filha Paula Masseran de Arruda Xavier, com 24 anos, reclamava da falta de punições. "A gente vai morrer com essa tristeza. Onde mais dói é ver a minha mulher sentindo falta, os irmãos sentindo falta dela. A segunda coisa que dói muito é ver que a justiça não aconteceu", disse para Agência Brasil, em 2017. Archelau morreu no final de 2021.

Aquele dia

Quando o Airbus 320 se aproximava de Congonhas, os pilotos Kleyber Lima e Henrique Stefanini Di Sacco receberam autorização da torre de comando para pousar. "Nada dos spoilers", diz um dos pilotos, em referência ao mecanismo usado para frear a aeronave. "Desacelera, desacelera", diz o outro comandante. Nessa altura, as rodas do avião já estavam na pista. "Ai, meu Deus? Ai, meu Deus. Ai", se ouve. "Vai, vai, vai? Vira, vira, vira", diz um dos pilotos. A aeronave sai da pista, dá um rasante sobre a avenida Washington Luiz. A conexão é perdida. A conversa foi gravada pela caixa preta.

Nas semanas após as últimas mensagens da aeronave, os familiares precisavam conciliar o luto com uma montanha de burocracias. Primeiro, lidar com os efeitos psicológicos. Houve familiares que enfrentaram crises depressivas, ansiedade, abandono de trabalho e adoeceram - alguns, com os sintomas até hoje. Ao mesmo tempo, eram recrutados por advogados, pela imprensa e ainda precisavam levar pertences dos familiares para a perícia. A sequência de acontecimentos provocou alterações internas nos familiares.

O luto, por exemplo, transformou Carmem Caballero em uma pessoa apegada à organização e aos objetos. Após o acidente, ela levou a embalagem de um iPod até São Paulo para compará-lo ao modelo usado pela filha, pois um modelo havia sido encontrado pelos bombeiros. Era o mesmo de uma das filhas. Hoje, o tocador não funciona, mas está praticamente intacto, guardado em uma pequena caixa com notas em papel, uma carteira e um colar da mãe também retirados dos destroços. "Quando recebi [esses objetos], foi muito difícil", diz Carmem para a reportagem de Ecoa.

O jogo de empurra

Dois anos depois, em 2009, o Cenipa (Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos) da Aeronáutica listou causas para o acidente, como a posição do manete na hora da aterrissagem, a ausência de alertas sonoros, a falta de treinamento dada aos pilotos para operar a aeronave, não haver um copiloto qualificado (os dois eram comandantes), além de ajustes ainda não realizados na pista de Congonhas.

Carmem Caballero, mãe de Júlia e Maria Isabel e filha de Elizabete Silva Caballero, vítimas do voo 3054 da Tam, em 2007 - Daniel Lupo/Pó de Vidro/UOL - Daniel Lupo/Pó de Vidro/UOL
Carmem Caballero, mãe de Júlia e Maria Isabel e filha de Elizabete Silva Caballero, vítimas do voo 3054 da TAM, em 2007
Imagem: Daniel Lupo/Pó de Vidro/UOL

Com a conclusão, os familiares começaram a se perguntar: afinal, quem deveria ser responsabilizado? A polícia e o Ministério Público de São Paulo indiciaram onze pessoas da Infraero, da Anac e da TAM. A Polícia Federal, no entanto, indiciou apenas os dois pilotos como os responsáveis pela tragédia. A Airbus também empurrou a responsabilidade para os pilotos mortos e para a Infraero.

"Foi uma conclusão covarde, conveniente: os mortos são os culpados. Os familiares nunca aceitaram essa versão de que os pilotos eram os culpados. No máximo, que eles foram induzidos ao erro", defendeu o jornalista Roberto Corrêa Gomes, em entrevista à Agência Brasil em 2022. O irmão dele, Mário Corrêa Gomes, foi uma das vítimas.

Em 2015, a Justiça Federal absolveu a ex-diretora da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) Denise Abreu, o então vice-presidente de operações da TAM, Alberto Fajerman, e o diretor de Segurança de Voo da empresa Marco Aurélio dos Santos de Miranda e Castro, denunciados pelo Ministério Público Federal (MPF) por "atentado contra a segurança de transporte aéreo". Para a Justiça, os réus não agiram intencionalmente.

Segundo Christophe, vice-presidente do grupo de familiares de acidentes aéreos, o maior legado do voo da TAM 3054 foi a criação de uma câmara de indenização para reparar as famílias e acelerar as perdas financeiras. O modelo para acelerar compensações pode ser usado em possíveis acidentes de grandes proporções. "Quanto seria a compensação, por exemplo, para a vida de uma vítima? Era essa a pergunta feita para as indenizações", explica.

De acordo com ele, foi calculado o cargo ocupado pelas vítimas e a defasagem econômica causada nas famílias enlutadas, muitas delas com problemas de saúde mental que se arrastam até hoje ou que perderam os principais provedores. Entre as vítimas, existiam de executivos a professores.

No meio da aviação e entre parte dos familiares, a explicação mais aceita é a de que uma série de erros e contextos causaram o acidente com o voo 3054 da Tam, em maior e menor escala, como indicava o relatório do Cenipa. Como acontece em todo acidente aéreo ao redor do mundo, a conclusão técnica buscou explicações e direcionamentos para evitar novos acidentes e vítimas.

Compensações

Procurada por Ecoa, a Latam Airlines (antiga TAM) afirma, em nota, se solidarizar "com todos aqueles que foram afetados por este acidente" e que, "embora consciente de que nada poderá compensar as perdas, a companhia se empenhou, desde o primeiro momento, em apoiar os familiares de todas as maneiras e concluir o mais rápido possível o procedimento de indenização". O valor das indenizações é mantido em segredo pela companhia aérea, que garante que todos os acordos já foram concluídos. Em 2017, dez anos após o acidente, após rodadas de negociações com os familiares, a Airbus anunciou um acordo de R$ 30 milhões com 93 parentes de 33 vítimas do 3054.

No final de 2022, a Infraero entregou a extensão de uma rampa para aumentar a área de frenagem das aeronaves em Congonhas, 15 anos depois do acidente.

Ali na frente, onde ficava o prédio da TAM, foi erguido o memorial em homenagem às vítimas, inaugurado em 2015 pela Prefeitura de São Paulo. A praça possui uma árvore, a única sobrevivente do impacto, e bancos. No meio da obra, há um espelho d'água onde, no fundo, foram gravados os nomes das 199 vítimas do voo 3054, entre elas os de Elizabete, Júlia, Maria Isabel, Rebecca, Mario, Kleyber e Henrique.

Reportagem Marcos Candido | Edição Fred Di Giacomo |

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