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Histórias incríveis de heróis improváveis


Morta com as netas em acidente da TAM, professora deixou legado inesperado

De Ecoa, em São José do Rio Preto (SP) e São Paulo (SP)

26/06/2023 06h00Atualizada em 26/06/2023 18h06

Assista ao vídeo acima

Encontrei o nome "Elizabete Caballero" em um jornal antigo e me surpreendi com a descoberta. Na década de 80, Elizabete fundou um grupo ecológico em São José do Rio Preto, cidade localizada a 443 km da capital paulista. Havia poucas organizações desse tipo na época, ainda mais lideradas por uma mulher no interior de São Paulo. Quis conhecê-la, mas não a encontrei. O que poderia ter acontecido com ela?

Elizabete era professora do departamento de história natural da Unesp, a Universidade Estadual Paulista. Formada no Rio Grande do Sul, ela chegou em 1962 à universidade para defender uma tese de doutorado sobre anelídeos. Ou seja, minhocas. Era a única a estudá-las na cidade de São José do Rio Preto

Seu trabalho era cavar e examinar as minhocas no laboratório. Uma tarefa pesada. Bete tinha a ajuda de pescadores e "minhoqueiros" para encontrá-las. "As minhocas comem a terra (...) Elas arejam e adubam o solo, aumentam a drenagem. É um tratorzinho trabalhando", explicou Bete para um jornal em 1970. A fama cresceu e ela passou a responder dúvidas de leitores nos jornais.

A Sociedade Regional da Ecologia foi fundada por Bete para plantar árvores, defender a biodiversidade e lutar pelo meio ambiente na região. O maior objetivo da sociedade era a limpeza do Rio Preto, que dá nome à cidade. À época, o rio recebia esgoto e arriscava a vida dos animais e até da água na torneira dos moradores.

Nessa altura, o grupo já fazia barulho. Graças a eles, a prefeitura voltou atrás no desmatamento de 50% de uma área de vegetação nativa, em 1983. "A mata será laboratório permanente, inclusive de sementes de árvores nativas", disse em entrevista na época. Faltava, porém, o rio.

"Era uma pessoa amável, gentil, educada", diz o professor da Unesp Arif Cais, aluno de Bete no final dos anos 60. Segundo ele, Bete cativou engenheiros, médicos, professores e advogados para a sociedade.

Era uma mulher elegante, bonita, mas de trabalho no campo e de trabalho pela cidade, Arif Cais.

Bete e Alejandro

Quando era estudante universitária, Bete organizou uma manifestação contra um professor com pouca paciência para explicar uma matéria. Foi mandada para a direção, onde conheceu um coordenador mais velho, um espanhol chamado Alejandro Caballero. Ela foi advertida, voltou para casa e começou a perceber que estava apaixonada pelo homem que havia conhecido.

Bete e Alejandro casaram e tiveram dois filhos: Alexandre e Carmem. A filha a acompanhava à universidade, o que, para uma criança, parecia uma aventura na selva. Os laboratórios tinham serpentes, ratos, insetos, animais empalhados. "Eu achava aquilo muito fascinante", lembra Carmem.

1 - Daniel Lupo/Pó de Vidro/UOL - Daniel Lupo/Pó de Vidro/UOL
Carmem Caballero, mãe de Júlia e Maria Isabel e filha de Elizabete Silva Caballero, vítimas do voo 3054 da Tam, em 2007
Imagem: Daniel Lupo/Pó de Vidro/UOL

Nos anos 1990, Alexandre teve um filho. Em 1992, Carmem também deu à luz Júlia, a primeira neta de Bete. A família sentia a chegada de uma nova geração sem imaginar uma reviravolta. Em maio de 1993, Alexandre morreu em um acidente de trânsito em São Paulo, quando voltava de um trabalho, como advogado.

O pai, Alejandro, havia fugido da Espanha, durante a Guerra Civil Espanhola e se imaginava capaz de resistir a momentos difíceis, mas nada o preparou para a morte de um filho aos 27 anos de idade. "Foi um trincado muito grande na família", lembra Carmem.

Em 1996, Carmem engravidou novamente e deu à luz Maria Isabel, a segunda neta da professora Bete. A família sentia ter renascido com a bebê. A avó ajudava a cuidar das netas. "Ela sempre dizia para as amigas que a melhor coisa que aconteceu na vida dela foram as netas", diz Carmem. Em 2003, também nasceu Lilian, a mais nova das três filhas de Carmem.

Os almoços da família Caballero voltaram a ter música, risadas, crianças correndo por entre as pernas dos adultos. Nos anos 2000, as irmãs já adolescentes ouviam Shakira, Red Hot Chili Peppers, Avril Lavigne no iPod e aguardavam novos livros e filmes de Harry Potter. Todo ano, viajava de férias com a avó para o Rio Grande do Sul.

Voo TAM 3054

Voo da TAM 3054, que se chocou contra prédio em São Paulo - Sérgio Alberti/Folhapress - Sérgio Alberti/Folhapress
Voo da TAM 3054, que se chocou contra prédio em São Paulo
Imagem: Sérgio Alberti/Folhapress

Em 2007, a professora Bete decidiu realizar o sonho de Júlia, a mais velha, de passear em Gramado. Na viagem, a avó também levou Maria Isabel, a neta do meio. Com pouco mais de três anos, Lilian, a mais nova, ficou em São José do Rio Preto com Carmem.

Todos os dias, a mãe telefonava para saber como estava o passeio das duas filhas com a avó. "Quando me tornei mãe, foi um propósito que coloquei: que todos os dias lembraria as minhas filhas do quanto eram amadas", diz.

Falei: ó, mamãe vai tá esperando vocês no aeroporto aqui. Carmem Caballero

Na volta para casa, Bete, Júlia e Maria Isabel saíram de Gramado (RS) até Porto Alegre (RS), onde embarcaram em um avião até Congonhas, em São Paulo, para fazer uma escala até São José do Rio Preto, a mais de 400 km da capital.

Enquanto embarcavam, Carmem assistia despreocupadamente aos jogos Panamericanos no Rio de Janeiro, em casa. O telefone tocou. Do outro lado da linha, estava o pai, Alejandro. "Você viu o avião que caiu?", perguntou. "Será que é o mesmo delas?"

Carmem mudou de canal. Por instinto, conferiu se o número do voo era o mesmo da família. Não era. Apesar disso, o noticiário ainda era caótico. As primeiras notícias falavam sobre a explosão de um posto de gasolina, mas logo o avião foi avistado entre as chamas. No meio da confusão, um número errado do voo foi veiculado pela imprensa. A informação trouxe mais tranquilidade.

"Até que a repórter falou: 'Preciso fazer uma correção: o número do avião é o JJ3054'", diz.

O 3054 pousou em Congonhas, mas não desacelerou. Segundo as investigações, uma das alavancas ficou na posição de aceleração. A aeronave, então, perdeu o controle, saiu da pista, sobrevoou a avenida Washington Luiz e bateu contra o prédio da TAM e em parte de um posto de gasolina. Entre a autorização para o pouso e a colisão, se passaram poucos segundos.

Os 187 passageiros a bordo (e mais doze pessoas em solo) morreram, em um total de 199 mortes. Entre as vítimas, estavam advogados, empresários, aviadores, tripulantes e famílias inteiras em férias — e também Bete, a avó com as duas netas. "Eu soube pela televisão. E só consegui gritar e cair", diz Carmem.

Nas semanas seguintes, os Caballero tentaram resolver burocracias e se esforçaram para dar entrevista para os jornais. "Eu tinha ido assistir ao novo filme do Harry Potter, que elas adoravam. Para não estragar a surpresa, porque elas iam ver assim chegassem, não contei muitos detalhes", disse Carmem para a Folha de S. Paulo.

Professora Elizabete, ao centro, e professor Arif ao lado - Reprodução/Arquivo pessoal professor Arif - Reprodução/Arquivo pessoal professor Arif
Professora Elizabete, ao centro, e professor Arif ao lado
Imagem: Reprodução/Arquivo pessoal professor Arif

O luto transformou Carmem em uma pessoa apegada à organização e aos objetos. Mais de quinze anos depois, ela guarda numa caixinha o material encontrado pela perícia no local do acidente. Nela, há notas de dinheiro intactas, uma carteira e um colar que Bete, sempre elegante, usava. Das filhas, uma pulseira e o iPod em perfeito estado. "Quando recebi, foi muito difícil", diz.

Após mais de dez anos de um jogo de empurra, ninguém foi condenado pelo acidente. A companhia aérea, hoje chamada Latam, e a fabricante da aeronave, Airbus, fecharam acordos para compensar parte dos familiares.

No início de 2022, o Ministério da Infraestrutura inaugurou uma rampa para aumentar a pista de Congonhas e ampliar uma área de frenagem, o que, em tese, também poderia ter permitido o voo arremeter e evitar o choque contra o prédio, embora a velocidade a direção do 3054 impedissem esse tipo de manobra. A extensão também ajuda a desacelerar aeronaves, assegurou a pasta. Em 2012, a prefeitura inaugurou um memorial onde ficava o prédio da TAM, hoje chamada de Praça Memorial 17 de Julho.

"Esse é um dia que marcou não apenas a instituição [a Unesp] e minha amizade com Bete. Marcou toda a cidade, que se comoveu", lembra Arif, o ex-aluno e professor do mesmo departamento.

Seu Arif, amigo e ex-aluno da professora Elizabete: "uma pesssoa amável, educada, gentil" - Daniel Lupo/Pó de Vidro/UOL - Daniel Lupo/Pó de Vidro/UOL
Seu Arif, amigo e ex-aluno da professora Elizabete: "uma pesssoa amável, educada, gentil"
Imagem: Daniel Lupo/Pó de Vidro/UOL

A sociedade ecológica de Bete saiu vitoriosa: o esgoto de 90% da cidade é tratado e o Rio Preto é lar para pássaros, anfíbios, peixes e mamíferos. Bete também lutou pelo tombamento do teatro que viria a chamar Paulo Moura, em frente ao rio, que seria demolido para a construção de prédios. Antigamente, o local era uma antiga fábrica de óleo de amendoim. Hoje, moradores saem do teatro e descansam no calmo rio que atravessa a cidade e segue pelo interior paulista.

Infelizmente, a Bete não viu a limpeza do rio Preto. Mas a semente dela está aqui e a semente germinou. Arif.

Para ir à universidade, ele dirige um fusca que passa na frente da escola Maria Elizabete Caballero, uma homenagem feita pela prefeitura. "Passo aqui muitas vezes por semana e sempre me lembro da professora Elizabete", diz.

Carmem vive com a Lilian, que tem 19 anos e cumpre os ritos da idade: acabou de arrumar um estágio em uma empresa de tecnologia em São José do Rio Preto. A saudade continua, se transforma, aperta.

Nossa casa sempre tinha piadas, brincadeiras e novidades. É o lado bom. Graças a Deus, tivemos esse período, esse tempo de vida junto para ter essas memórias. É isso que dá um fôlego para continuar: se você foi feliz, sabe disso e tem essas memórias. Carmem Caballero.

Reportagem Marcos Candido | Edição Fred Di Giacomo |

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Errata: este conteúdo foi atualizado
Ao contrário do informado anteriormente, foram 12 mortos em solo no acidente com o avião da TAM e, não, 11.