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Marina Mathey

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Gênero e sexualidade: Seriam os dois tão independentes assim?

Marina Mathey em seu clipe "Monstro" - Fe Avila/Acervo pessoal
Marina Mathey em seu clipe 'Monstro' Imagem: Fe Avila/Acervo pessoal

20/07/2022 06h00

A reiteração constante que ainda muito fazemos sobre gênero e sexualidade serem questões distintas nos mostra como estes pontos no entendimento sobre nós mesmos é facultativo no senso comum. A cisgeneridade heterossexual, acostumada à sua ideia de "normalidade" - e ao seu pertencimento a ela - se blinda e abdica de questionar não só a si mesma, mas também as raízes desta ideologia que a faz acreditar desde o nascimento que este é o único caminho possível e digno. Já sabemos que isso é uma falácia muito bem inventada para o controle dos corpos, para a manutenção das lógicas e estruturas de poder, muito enraizados nos valores eurocentrados coloniais, mas será mesmo que, para além dessa limitação, nossas noções de gênero e sexualidade são tão dissociáveis assim? Distintas são, mas não acredito que sejam questões a serem discutidas de forma desconectada.

Partindo da minha experiência pessoal e da de outras tantas pessoas trans - mas não só - podemos analisar um processo muito mais de investigações e percebimentos do que de certezas absolutas nesta fricção gênero/sexualidade. Eu, antes construída numa identidade de um homem gay cisgênero - obviamente pelas imposições sociais e pela falta de referência - acreditava, mesmo após me perceber enquanto travesti, que continuaria me sentindo atraída pelos mesmos homens cisgêneros de sempre. Após a transição de gênero fui me dando conta de que aqueles homens gays com quem me relacionava já não se interessavam mais por mim, dado que eu passava a reivindicar minha mulheridade, e aí começaram meus questionamentos: se antes eles me queriam e agora não querem mais, eles não se interessavam por mim, mas pelo meu gênero? Onde está a raiz do desejo, então?

Ao mesmo tempo eu, desdenhada por estes e imbuída destas questões, passei a me perguntar sobre o meu próprio desejo. Estaria eu refém de me interessar apenas por quem não se interessa mais por mim ou haveria alguma saída? Se há saída, se é possível moldar meus interesses, experienciar novas possibilidades, seria então a sexualidade algo tão inerente e imutável?

Eu sempre duvidei da posição de que se nasce isso ou aquilo. Nossa sociedade, tão programada para a fabricação de determinadas regras e comportamentos, já foi tão distinta em outros tempos passados que acreditar nesse determinismo quase genético me causava certo desespero, como se estivesse fadada a certas dores ou prazeres por pura aleatoriedade do destino. Nessa angústia e inquietude, busquei então me mover mais pelo interesse de possibilidades saudáveis para mim do que pelos ímpetos que meu corpo já conhecia. Me relacionei então com mulheres cisgêneras, depois fui percebendo a necessidade de aproximar meus afetos daqueles e daquelas que vivem realidades mais próximas à minha. Foi então me envolvendo com pessoas trans em geral que várias destas perguntas começaram a fazer sentido.

Ao me envolver sexualmente com corpas trans as questões passaram a ser outras. A lida com meu próprio corpo, inclusive com minha genitália, pedia revisões, inclusive por começar a entender que o sexo podia partir de outros princípios e sensorialidades que não o foco único e principal no órgão genital. Toda certeza caía por terra e uma gama de novas perspectivas e possibilidades se apresentavam para mim, e principalmente um caminho de maior apropriação do meu corpo e potencialidade no campo afetivo. Por um lado, então, compreendia todo um universo possível para mim, por outro, verticalizava ainda mais meus questionamentos sobre o nascedouro das sexualidades.

De homem cis gay a travesti hétero a travesti pansexual... Três percebimentos distintos sobre a minha sexualidade, sempre caminhando em direção ao que mais me completasse e me representasse de fato. Viver minha real identidade de gênero foi o que me proporcionou grande parte destas reflexões e experiências, mas muito também do meu interesse por me conhecer e viver minhas verdades. Hoje assisto à diversos homens cis heterossexuais que se relacionam comigo ou com outras travestis vivendo a infelicidade de não conseguir bancar publicamente seus desejos, mesmo levando em conta que se relacionarem conosco não destitui sua heterossexualidade, mas a imperação da genitália na lida com a sexualidade, com o desejo e com suas noções de gênero causa não só estranhamento como põe em xeque tais certezas impostas previamente.

É óbvio que na sociedade transfóbica em que vivemos, assumirem o desejo por nós é bater de frente com todo um entorno de repressão e preconceito, mas nada que se aproxime do que vivemos em nossa própria pele diariamente. E meu intuito aqui não se limita apenas a empoderar tais homens para que vivam seus prazeres com liberdade - mesmo que isto seja algo de extrema importância para que, inclusive, parem de nos matar - mas principalmente que reflitamos mais profundamente sobre as fronteiras que nos deixamos colocar, seja por imposição social, seja por um falso comodismo.

Dado isso, acredito que as discussões sobre gênero, apesar de distintas, precisam sim andar juntas. Repensar as estruturas normativas de gênero é também repensar o mesmo das sexualidades. Sexualidade não apenas como orientação sexual, como prática física do desejo, mas como percebimento e compreensão do nosso corpo na sociedade. O que nos move, o que nos alimenta, o que nos provoca movimento através do desejo. Ser travesti aguçou minha sexualidade e me movimentou a novas compreensões porque me aproximou de mim mesma. Ser travesti me fez inclusive compreender que minha energia sexual poderia ser distribuída no meu auto cuidado, no meu trabalho, nas minhas amizades... fez com que eu quebrasse o feitiço e me permitisse não mais ser escrava do desafeto cisgênero, muito menos do desejo alheio como complemento de mim.

Que discutamos, então, sobre tais assuntos de forma transversal, tendo como objetivo a investigação de nossos desejos individuais e coletivos ao invés das fronteiras que os limitam. Não é porque visam superficializar a experiência de nossas corpas, restringir nossos desejos e potências, que vamos seguir tais ditames. Se o que está posto não nos convém, inclusive enquanto vocabulário, busquemos então outras formas e conteúdos que melhor nos caiba na boca. A catalogação das experiências também servem, em alguma instância, como forma de controle. Que atravessemos este deserto com visão periférica, atentes não apenas ao que nos aparece como destino, mas em busca de rotas alternativas que nos movam para além do esperado, que nos permitam viver na pergunta mais do que na resposta, inquietando toda e qualquer certeza que possa querer nos acomodar/incomodar.