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Marina Mathey

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Chá de Revelação: sabor de transfobia com aromas genitais

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Imagem: iStock

10/11/2021 06h00

Hoje resolvi mudar de assunto, falar sobre outros temas, já que me criticam tanto por insistir nos problemas sociais do Brasil. Resolvi falar sobre culinária, algo inerente a qualquer ser humano, e espero que vocês gostem.

Muito me instiga o poder dos chás. Seus aromas, propriedades que, compostos por produtos naturais — plantas — nos acalmam, nos deixam mais atentas e até mesmo servem de afrodisíaco. Mas quero falar sobre um chá diferenciado e muito consumido pela nossa população. Diferente dos outros, é composto de ingredientes nocivos, quase como um veneno, um feitiço bem articulado para aprisionar existências. Um chá amargo, com coloração binária em tons de azul e rosa e bastante naturalizado entre a população cisgênera: o Chá de Revelação. Segue abaixo a receita:

Ingredientes:

  • Bexigas, bolo e decorações em geral - Tudo articulado em tons de rosa e azul.
  • Um apanhado à gosto de amigos, amigas e familiares cisgêneros (de preferência. Caso convide alguém trans, cuidado, pois pode estragar sua receita).
  • Uma mulher cisgênera grávida - de preferência acompanhada do pai da criança, esse também cis.

Modo de preparo:

- Marque o evento do Chá como se fosse um dos momentos mais importantes da sua vida. Pense apenas nos seus princípios, por mais equivocados que sejam, porque se pensar na felicidade da criança que está por nascer você não o realizará (o que acho mais contundente).

- Tenha em mãos o ultrassom do feto, para compulsoriamente identificar sua genitália e, mediante isso, impor-lhe um gênero ao nascer (sabemos bem que órgão genital não define gênero, porém para o chá dar certo você precisa ignorar a existência de pessoas trans no mundo ou equivocadamente acreditar que as pessoas "viram" trans somente na fase adulta).

- Não deixe que ninguém saiba se a criança terá pênis ou vagina antes de cortar o bolo. Existe um grande risco de estragar a receita do chá caso isso aconteça, pois a euforia produzida por ele está contida nessa surpresa. A população cisgênera, na maioria das vezes, possui essa estranha compulsão por saber sobre a genitália das crianças. Concordo, isso é bizarro, mas é um sintoma social a ser estudado mais a fundo. Eu, particularmente, não concordo com a produção desse chá, porém é necessário discutirmos a existência dele, pois milhares de famílias vêm tomando sem levar em conta seus efeitos colaterais.

- Construa um grande suspense, como se a descoberta do órgão genital do feto fosse a coisa mais importante a se saber sobre a criatura que está para nascer. Isso colabora para a construção de todo um imaginário a ser imposto para ela: roupas, brinquedos, gostos, desejos, afetos possíveis e impossíveis, ou seja, toda uma cartilha a ser seguida, com risco de vida caso a criança não se identifique com ela após o nascimento.

- Compre um bolo — você que sabe a genitália do feto — em que apenas o recheio revele a cor imposta ao gênero que se supõe correspondente (menino = azul; menina = rosa). Sim, também acho um delírio corresponder cores às identidades de gênero, porém, novamente, apenas explicito esse sintoma social aqui — a cisgeneridade, definitivamente, é uma compulsão perigosa a ser estudada.

- Após a surpresa ser revelada, converse com os convidados, curta o restante do evento tecendo futuros em relação ao último passo da receita. Junto das outras pessoas presentes, construa uma gama de violências que a criança deverá corresponder para a felicidade única e exclusiva do Cistema, dado que a feitura do chá (vide primeiro item do preparo) pressupõe ignorar a felicidade da mesma.

Por fim, mas não mesmo importante, vale ressaltar que o Chá não determina que o futuro corresponda às suas expectativas. Por mais que você não conviva com pessoas trans, ignore totalmente a existência destas e seja uma pessoa explícita ou implicitamente transfóbica, há grandes chances de, ao crescer, seu filho, filha — ou filhe — se reconhecer como uma. Nesse caso, aconselho que de uma vez por todas reconheça a ineficácia do preparo, que este serve apenas para a validação de valores que lhe farão momentaneamente se sentir bem por perpetuar a cisgeneridade compulsória.

Aconselho de antemão que, se lê esse texto, abdique totalmente da possibilidade de prepará-lo. Pense na criança primeiro, antes de pensar em si próprio. Impor a cisgeneridade a ela/ele/elu lhe renderá efeitos colaterais por vezes irreversíveis, seja a exclusão familiar, escolar, profissional e social caso não se identifique com a cor de seu bolo — lembrando que a cor é só um símbolo referente à cartilha imposta — seja na compulsividade desmedida de seguir tal cartilha, perpetuando por mais uma geração valores violentos e exclusores.

Ironias à parte, é urgente que a população cisgênera compreenda as violências acarretadas por seus rituais de controle. A manutenção da cisgeneridade compulsória é uma prática nociva a todes, não apenas às pessoas trans. Não pauto aqui a inexistência de pessoas cisgêneras. É possível que pessoas se identifiquem como homens ou mulheres cis, porém essa compulsividade constrói um pensamento coletivo de que pessoas trans são um erro, uma anormalidade, algo que não corresponde à ideia de humanidade - essa reservada, nesse caso, apenas às pessoas cis.

Se você já realizou algum chá de revelação no passado, te convido a rever seus passos e analisar a quantidade de conceitos e comportamentos transfóbicos que está reproduzindo e impondo aos seus filhos e filhas sem nem mesmo perceber. Nós percebemos! Percebemos porque somos o problema nessa receita, mas no caso o problema - palavra tão usada para algo ruim - aqui se torna, na verdade, a solução para a diminuição da violência de gênero na nossa sociedade.

É muito mais difícil e doloroso se reconhecer como uma pessoa trans após passar por um processo de cisgenerificação desde a infância. Existem fatos que evidenciam a expressão da identidade de gênero de uma criança desde os dois anos de idade. Precisamos valorizar os impulsos e interesses das crianças mais do que impor algo que julgamos ser o certo para elas, assim prevenimos diversas problemáticas que nos levam a viver num país extremamente transfóbico como o Brasil.

Não beba deste chá. Não produza este chá. Se te passo a receita, é para que talvez consigas enxergar o quão nocivo ele é, e que a única ideologia de gênero existente e imposta na nossa sociedade é a cisgênera.