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Marina Mathey

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Em terra de genocídio, quem acolhe é acolhido, e quem é acolhido acolhe

Divulgação
Imagem: Divulgação

23/06/2021 06h00

Enquanto lutamos pelo respeito aos nossos direitos precisamos seguir com medidas para permanecermos vivas. Dentro de uma realidade que oprime e marginaliza pessoas transvestigêneres, pretes e indígenas, as oportunidades de emprego formal e o direito a uma vida minimamente saudável é ínfima. Recorrer às drogas para consumo e/ou venda, assim como o trabalho sexual se torna muitas vezes a única saída possível, e não se trata de falta de vontade ou fácil desistência de uma possibilidade alternativa que se enquadre nos moldes que a sociedade enxerga como notável e até mesmo legal. O buraco é muito mais embaixo.

Para falar com mais profundidade sobre esse assunto, convidei essa semana Matuzza Sankofa para uma breve conversa. Matuzza, travesti preta, há sete anos realiza, a partir de ONGs, um trabalho focado em cuidados com as populações vulnerabilizadas. Atualmente, em São Paulo, atua como coordenadora do núcleo de práticas de redução de danos no Centro de Convivência É de Lei e é responsável pelo psicossocial da Casa Chama, onde é sócia ao lado de Digg Franco.

"Para falar um pouco do psicossocial da Casa Chama - onde a gente acolhe demandas que aparecem no dia a dia em relação às pessoas transvestigêneres - as maiores demandas que aparecem são por moradia, pessoas que sofreram violência e uma coisa que têm aparecido muito do ano passado para cá são pessoas transmasculinas que vêm com uma demanda de moradia porque são expulsas de casa após violência sexual de algum membro da família. Na minha avaliação é que neste contexto da pandemia, com as corpas transvestigêneres tendo que ficar mais em casa, as violências sexuais também com a família aumentaram. Para você ter ideia, na última semana foram seis pessoas transmasculinas diferentes. Em uma semana."

Demandas como essas são pouco ou nada discutidas nas mídias de massa, dada a invisibilização dessa população. A violência para com a população trans - e não só - está tão naturalizada na nossa sociedade que quase parece inexistente, salvo quando estamos imersas nessa realidade por fazermos parte dela.

Esse respaldo, feito a duras penas e sem suporte do Estado na maioria das vezes, é possível graças às ONGs e casas de acolhida que, em conexão umas com as outras, vêm articulando possibilidade de sobrevivência para essas pessoas. O famoso "nóis por nóis", dado o descaso geral, provê a distribuição de oportunidades e de renda para que cada vez menos pessoas sejam mortas ou suicidadas por conta da atual realidade.

Suicidadas, sim. Conjugamos dessa forma para deixar explícito que a responsabilidade sobre esses suicídios é do Estado e da sociedade cis-hetero-branca normativa, que impossibilita o avanço e a prosperidade de corpas que não correspondem aos seus recortes exigidos, que não são consideradas humanas por esses que ainda hoje tentam pautar quem o é ou não. Não se trata de uma atitude autônoma e individual de abandonar a vida, de desistência ou falta de força, pelo contrário, é muitas vezes por não suportar a ausência de possibilidades de transformar essa realidade própria e de seus pares que o suicídio aparece como opção de escape, por isso a necessidade dessas ações de reparação e acolhimento.

Essa realidade desértica é a mesma que empurra sistematicamente essas populações para as dependências químicas. Não criarei juízos de valor aqui sobre o uso de drogas ilícitas, seja de maneira recreativa ou por dependência. Precisamos compreender e discutir sobre essa realidade em sua crueza, na raiz e junto das pessoas que estão imersas nela. A guerra às drogas já se mostrou um projeto falido há tempos, e não só isso, já foi desmascarada. Podemos compreender em números e fatos que a guerra às drogas foi - e é - um plano de extermínio necropolítico, destinado a criminalizar e matar essas populações, e principalmente a população negra e transvestigênere.

"Historicamente a humanidade faz uso de duas estratégias para dar conta das dores de se viver no mundo. A arte é uma delas, e a droga é uma outra possibilidade. Aí é importante a gente separar quando a gente fala de drogas, porque existem duas possibilidades. As pessoas podem fazer um uso recreativo de substâncias, um uso que não interfira no dia a dia, e tem pessoas que fazem um uso um pouco mais problemático das substâncias. E aí não dá pra dizer que o problema é o uso da substância. O problema é a vulnerabilidade da pessoa que está usando. Uma pessoa trans que está na rua vai usar da estratégia do uso de drogas para a sobrevivência, para dar conta da dor que é aquilo tudo. Nesse frio, por exemplo, que está em São Paulo, a pessoa que usa álcool... é uma estratégia de redução de danos ela usar o álcool na rua para resistir ao frio, para se aquecer". "Não existe guerra a um objeto. Se tiver uma pilha de cocaína aqui no chão isso não vai alterar nada na nossa vida, porque a gente pode dar a volta por ela ou pode cair de nariz em cima, mas o efeito passa. A questão mais importante quando a gente discute a questão de drogas no Brasil é que a gente tem que fazer um debate sobre a legalização das drogas."

Matuzza explica que, com a legalização, esse problema deixará de ser tratado como caso de segurança pública e passará a ser uma questão de responsabilidade da saúde. Assim as pessoas terão um devido acompanhamento profissional para uso de medicação para ajudar a cuidar da dependência, somado ao acompanhamento psicológico, cuidando da saúde mental e ajudando a compreender as dores que às levam ao uso sistemático de drogas.

Enquanto não compreendermos esse processo de extermínio e desamparo do Estado, seguiremos responsabilizando os indivíduos como se tivessem oportunidade de discernimento sobre as coisas em situações de extrema dor, de total abandono. É preciso levar em consideração as vidas que estão sendo jogadas às valas sem nome ou endereço, sem culpa ou responsabilização devida.

"A Casa Chama tampa uma brecha, um buraco que o Estado não tem conseguido dar conta, e aí a gente vem e mostra pro Estado que é possível fazer, e fazer com muito pouco."

Seja na lida com as dependências químicas, seja nas vidas que habitam a nossa sociedade em estados de extrema miséria, precisamos considerar, antes de tudo, que são exatamente isso: Vidas! Importantes como qualquer outra, importantes como cada um de nós, e que merecem - merecemos - um suporte devido.

Precisamos ser justas. Não apenas no sentido de justiça, mas de justeza. Oportunidades iguais para realidades desiguais não resultam da mesma forma. Necessitamos de ações que equiparem as oportunidades de se ter uma vida digna e de construir autonomia para todes, e para isso alguns precisam, sim, de mais atenção e cuidado. A meritocracia - grande aliada desse sistema genocida - tenta nos fazer acreditar na falácia de que é só tentarmos sempre e sem hesitar, sem cansar e mesmo sem ferramenta alguma que um dia poderemos chegar ao "topo", esse lugar ilusório. "Topo" que significa riqueza abundante, acúmulo de bens, mas se nos permitirmos iludir por esse discurso deixamos de perceber que para existir o topo precisa existir a base. Para existir pessoas milionárias é preciso que muitas outras sejam suas subordinadas, ou seja, vivam na extrema pobreza.

Voltando para a realidade de pessoas trans, precisamos levar em consideração que muitas vezes somos expulsas de casa aos treze ou catorze anos de idade por sermos quem somos, e - como diz a própria Matuzza - não vemos o Estado responsabilizando essas famílias por abandono de incapazes. O descaso é tamanho que não consideram a ilegalidade desses casos.

De toda forma, há quem mesmo dentro desse show de horrores esteja construindo pontes para o possível, trazendo dignidade e autonomia para quem nunca imaginou a possibilidade de tê-las. Trazendo autoestima, teto e comida para quem ontem não tinha nem mesmo onde se refugiar.
Não gostaria que se deparassem com essas reflexões e fatos de forma pessimista, mas que possamos olhar para o horizonte com a perspectiva de construir possibilidades para quem não as tem. Se pessoas como a Matuzza, ONGs como a Casa Chama vêm construindo, mesmo com muito pouco, esse oásis em meio ao deserto, com mais apoio, com mais mãos, mais e mais vidas serão salvas de um destino fúnebre, premeditado e imposto a elas. É responsabilidade do Estado e é dele que precisamos cobrar medidas de reparação histórica para com essas populações, mas como sabemos que o projeto de extermínio vem do mesmo, enquanto lutamos para transformá-lo, vamos edificando com as próprias mãos. É na vida que conseguimos agir, e é com vidas que estamos lidando!

"A Casa Chama trabalha com vidas, e para a gente é importante a vida. Para reduzir os danos, para fazer qualquer cuidado com as pessoas, as pessoas precisam estar vivas."

Agradeço à Matuzza, à Casa Chama, ao É de Lei e todas as pessoas e associações que vêm trabalhando sem medir esforços para reparar danos desastrosos que a história vem causando. Sem vocês tudo seria muito mais difícil. Seguimos juntes!