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Marina Mathey

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Quem disse que somos monogâmicas? Nem tudo que é "natural" é orgânico

Cena de "Relatos Selvagens", de Damián Szifron - Divulgação
Cena de "Relatos Selvagens", de Damián Szifron Imagem: Divulgação

02/06/2021 06h00

Hoje, retomando a minha sequência de textos referentes aos afetos, resolvi falar sobre essa forma de se relacionar que muitos pensam compreender, mas geralmente carregam uma ideia bastante equivocada e superficial sobre o assunto. Aliás, monogamia é algo natural ou seria mais uma norma social naturalizada em prol do status quo?

Acredito que já repararam que costumo colocar em xeque e questionar todo e qualquer comportamento que possamos admitir enquanto normal ou natural do ser humano. Isso porque é muito comum internalizarmos os regulamentos da sociedade sem nem mesmo percebermos desde criança, seja pelos pais, pela escola, pelo convívio social. Assim, passo-a-passo, escutando, observando e, quase sempre, repetindo as ações e falas que assistimos nesse processo de formação de nós mesmos, vamos aprimorando nossa capacidade de cumprir com o que a sociedade espera e quer de nós.

Gênero, sexualidade, gostos, interesses, desprezos... Tudo passa por esse filtro apreendido muitas vezes de forma imperceptível, nos fazendo crer que de fato somos isto, queremos aquilo, gostamos ou não de determinadas coisas ou características. Porém, o processo de autoconhecimento unido ao saber sociocultural e político nos liberta dessas correntes invisíveis aos olhos, mas completamente perceptíveis em nossas ações no mundo - "Saber sociocultural e político", aqui, pode parecer um pouco rebuscado demais, distante da nossa experiência cotidiana, mas nada mais é que a nossa constante observação, revelação e entendimento de como as relações se dão na sociedade, de onde vieram, quando surgiram, nos desalienando da ideia de que são universais e naturais da vida humana.

Tudo é construção. Tudo é relativo e, portanto, moldável, infinito de possibilidades. Quando nos desprendemos da moral cristã, nos distanciando dos ditames de certo e errado, não relativizando ações violentas, fatais e/ou destrutivas da nossa dignidade e humanidade, mas compreendendo os múltiplos olhares e pontos de vista que uma mesma coisa pode ter - se torna ainda mais palpável e possível reconhecer e compreender as diferentes formas de existir e se relacionar no mundo. É só observar a natureza. Ela age e existe no planeta de formas, cores, cheiros e comportamentos dos mais diversos, construindo uma pluri-versalidade, uma complexa e completa composição de vivências distintas que convivem em caos e harmonia, simultaneamente, produzindo movimento e relação entre todas as espécies de plantas ou animais - presas, caçadores, parasitas, etc. - mas se uma única espécie desaparece do meio ambiente ela desequilibra todo o seu entorno, destrói toda a cadeia sustentada pela relação, prejudicando a todos. Portanto, diversidade é vida, é fundamento da nossa existência enquanto seres vivos nesse planeta. Não à toa um terreno com plantio de uma única espécie vegetal produz um solo pobre de nutrientes, ao passo que a policultura enriquece o solo e possibilita uma melhor produção das espécies que ali coabitam.

Agora, por que estou falando sobre tudo isso? Pois bem! Dentro desses aspectos de nossos comportamentos no mundo muito se discute, mesmo que com dificuldade, sobre gênero, raça, sexualidade, mas também muito se ignora o fato de que nossa sexualidade e/ou afetividade é composta por diversos fatores que não só nosso interesse por uma pessoa dessa ou daquela identidade de gênero. Para além da atração - seja ela física ou intelectual - existem formas de como possibilitamos essas relações interpessoais, e a monogamia, principalmente na sociedade ocidental contemporânea, pós-colonial, tem sido tomada como uma dessas regras naturalizadas, sendo vista como a única forma de se relacionar que nos agrega respeito - social, não próprio.

Muito escuto, quando toco nesse assunto, frases como: "não consigo não ser monogâmica, sou muito ciumenta", "já não dou conta de um, vou dar conta de mais?" ou "Ai, eu entendo, mas quando eu amo uma pessoa eu não consigo pensar em outras". Frases como essas só revelam o quanto não discutimos e não conhecemos a monogamia de fato. E eu devolvo uma pergunta: você se relaciona, em sua vida, apenas com seu parceiro/a/e afetivo-sexual? Após encontrar alguém que você diz amar, isso elimina todos os outros amores da sua vida, sejam eles da mesma natureza ou de vínculo familiar, de amizade, etc? Por que um amor proíbe ou inibe outros amores?

A naturalização do pacto conjugal, do casamento entre duas pessoas, a artimanha contratual financeira chamada de casamento, a posse, o controle, a herança transferida - seja ela financeira, ética, moral e subjetiva. Aspectos como esses permeiam as vivências monogâmicas naturalizadas na nossa sociedade, essa que mais se enxerga como múltiplos micro-núcleos de dois do que exatamente como uma sociedade, ou melhor, como comunidade. Junto deles, a hierarquia dos afetos e dos poderes. Dos poderes quando podemos perceber o fundamento patriarcal onde a mulher é colocada, mesmo hoje, num patamar inferior dentro dessa relação, inclusive nas lutas por direitos quando a mesma resulta em algum problema grave. Agressões, cárcere privado, feminicídio, palavras fortes e que julgamos distantes de nós, mas que podemos assistir às suas versões mais "polidas" nos controles exercidos pelos homem - nas relações hetero-cis - em relação à com quem a mulher pode ou não se relacionar ou como ela deve se portar em determinados locais, com determinadas companhias.
Esses controles e regras, implícitas ou explícitas, não partem, obviamente, apenas dos homens em relação às mulheres, até mesmo porque não existem apenas pessoas heterossexuais no mundo, mas opto por falar a partir desse ponto de vista porque a heterossexualidade se impõe também para todes de forma compulsória e naturalizada, e o poder distribuído aos homens cisgêneros é, dentro do nossos sistema - ainda patriarcal - muito maior e mais respeitado, mesmo quando usurpado e transformado em atos de estupro e feminicídio, como citei acima.

Diante desses aspectos, quero apresentar um pouco da minha perspectiva e construção pessoal do meu entendimento sobre monogamia e não-monogamias - sim, essa última no plural. Nunca me senti contemplada por como as relações se dão na sociedade. Talvez por ser travesti, talvez por ser pansexual, mas com certeza por sempre me perceber questionando, mesmo quando pequena, por que as coisas são hoje como são, e observando os padrões de comportamento das pessoas, fui percebendo como as exceções à regra existiam nesse contexto.

Nunca me contentei com as coisas dadas de primeira, nunca aceitei algo simplesmente por "ser assim", sempre tive o paladar aguçado para tentar entender o que compõe cada pecinha desse jogo da vida. Hoje, então, com vinte e oito anos, unindo minha observação ao estudo, à leitura e pesquisa para entender melhor sobre outras possibilidades de lidar com as relações interpessoais para além da monogamia, coloco em prática meus entendimentos, em teste, de forma a reconhecer o que me contempla de fato ou não dentre uma enorme gama de possibilidades.

A monogamia, com certeza, não caminha ao meu lado. Talvez para tentar me passar a perna e me derrubar num ataque frágil de ciúmes, me tomando quando desatenta aos meus valores, mas nunca como algo que escolhi para mim. E não é por não ser monogâmica que não sinto ciúmes. Essa ideia de que é necessário abolir esse sentimento para ser não-monogâmico é totalmente equivocada. Assim como a raiva, a alegria, a melancolia, o desprezo, o prazer... assim como é impossível deixarmos de sentir qualquer outro sentimento por mera vontade e esforço próprio, o ciúme não será erradicado de nós, mas podemos construir, passo a passo, outras formas de olhar para ele e de lidar com esse sentimento quando ele nos habita.

O ciúme é um sentimento muito amplo! Insegurança, carência, sensação de perda do controle sobre outra pessoa, descontentamento com alguma atitude específica de alguém... São diversos sentimentos e situações que nos levam a dizer: "estou com ciúmes". É importante aprendermos a observá-lo, decodificá-lo, reconhecermos o que de fato sentimos e o que exatamente nos levou a sentir isso que chamamos de ciúme. É importante termos a inteligência - e sei que não é fácil, principalmente nas primeiras tentativas - de respirar fundo e não tomar atitudes impulsivas e reativas quando embriagadas por ele. Precisamos estudá-lo, e com muito carinho por nós mesmas, eliminando o horror que construímos em relação a esse sentimento, mas também a maquiagem que muitas vezes utilizamos para dizer que ele é o que sustenta o amor.

Posse não é amor. Posse é posse. Controle é controle. Cerceamento é cerceamento. As palavras são distintas exatamente por não significarem a mesma coisa. Portanto investiguemos o que é e como se manifesta o nosso amor em sua potência de construção, de respeito, de liberdade. Principalmente para nós, mulheres, esse processo é difícil - porém libertador - dado que estamos ainda mais acometidas ao controle ou cerceamento alheio dentro da lógica patriarcal. É um processo de construção da nossa integridade, da nossa individualidade e da nossa independência afetiva no mundo. O que não quer dizer que não possamos estabelecer vínculos com uma única pessoa no quesito afetivo-sexual por um período de tempo, mas precisamos nos desvincular da monogamia enquanto única forma de se relacionar e como a mais dignificante. Essa que tenta nos dizer a todo momento que precisamos encontrar "O" amor da nossa vida, aquela única pessoa digna de um pedestal altíssimo e que atribuirá a nós o real sentido de estarmos vivas.

Já estamos percebendo que fomos enganadas quando falavam sobre amor eterno. Também já nos demos conta de que nosso lugar é onde quisermos e fazendo aquilo que bem entendemos. Agora minha provocação é outra: dentro dessa falsa liberdade, vocês estão realmente contempladas em relação aos seus prazeres e trocas afetivas? Vocês sabem o que as interessa ou persistem em olhar para o mecanismo da sociedade e acreditar que precisam continuar a reproduzi-lo, pois só assim serão realmente felizes?

É um convite. Um convite à reflexão. É importante nos perguntarmos e escutarmos o nosso íntimo mais profundo, muitas vezes silenciado, para reconhecer se as coisas, como estão, nos agradam ou se fingimos que agradam para não ser mais difícil a caminhada. O conhecimento nos engrandece, mas torna mais penosa a existência, pois nos faz ver os problemas sem qualquer tipo de venda. É mais fácil seguir os ditames, mas com certeza é muito mais emocionante e prazeroso viver o gozo do livre-arbítrio sobre seus desejos.

Temos muito o que conversar. Não-monogamia é um mundo vasto de possibilidades, e eu jamais daria conta em apenas um texto. Mas deixo aqui esse start, esse início de reflexão, para que pouco a pouco a gente possa ir discutindo e se informando mais sobre o assunto. Ele não acaba aqui. Pelo contrário, está só começando.