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Café com Dona Jacira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Leve seus brinquedos lá pra fora

"Mãe não sabia brincar. Nunca fez uma pipa de varetas com folha de seda. Nunca cortou rabiola de plástico pra pipa dançar no alto. Nunca passou da fase capucheta, barrilete, réu no ar." - Victor Balde
"Mãe não sabia brincar. Nunca fez uma pipa de varetas com folha de seda. Nunca cortou rabiola de plástico pra pipa dançar no alto. Nunca passou da fase capucheta, barrilete, réu no ar." Imagem: Victor Balde

Colunista de Ecoa, em São Paulo (SP)

19/03/2023 06h00

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Quando eu era criança dificilmente esta frase tinha sentido.
Meus brinquedos nunca tiveram autorização para entrar dentro da casa de alvenaria da família. Eram pau e pedra, caroço de manga, espiga de milho...
Por si só já está dito através do tempo de brincar.
Meus brinquedos desde sempre nasciam predestinados a se reintegrar à natureza, a se entregar ao tempo. Entravam comigo somente os pensamentos, que já entravam arrependidos por ter que entrar.
Um destes pensamentos guarda memória de um brinquedo que brincava sozinho .
Era de uma menina da vizinhança, filha de dona Dulce .
Era uma boneca loira que se chamava Tipy e andava de bicicleta sozinha.
Ora, vejam só, de que me serviria um artefato que se carregava sozinha em cima de duas rodas?
Eu tinha brinquedos bem mais sutis, brincava com esta mesma amiga
enquanto o artefato de plástico rodante distraía a mãe dela,
que achava que a gente estivesse brincando mesmo com aquela aberração.
Este outro brinquedo ficou em segredo dentro de nós até ontem,
De tão bom que foi.
Seria a morte se alguém descobrisse o que nós duas descobrimos sobre nossos corpos.

Um dia, eu pensei que Deus havia me castigado por ir tão perto do precipício com minha amiga.
Flutuar e voar tão alto.
Bem alto mesmo.
Depois, veio a separação e eu fui para o convento.
Cresci miseravelmente aos pés de Deus por seis meses.
Quando voltei, eu já não era mais a mesma, nem ela.
Deixei até de falar com as árvores, com os tatus e as formigas.
Perdi grandes amigos.

Todo brinquedo pra mim sempre foi algo muito sério, uma obrigação até.
Objeto de desejo, orgia, deja-vu, tudo junto.
Depois passava, e assim como chegou, partia.
Voltava para o grande limbo que existe em mim,
que leva coisas e me dá outras em troca.
O padre, a pastora e minha mãe nem sonhavam com este ndotolo meu .
E a todo momento me diziam: "você precisa crescer".
Mas, brincar é coisa séria.
Até mesmo nas contendas de rua, a gente afiava as garras pra brincar de impor respeito até mesmo sobre a brincadeira.

O pior era que eu queria crescer, trabalhar, brincar de ficar rica e viajar brincando.
Mas viajar pra onde?
O vento varreu o tempo, se foram os primeiros brinquedos.
Chegou a caixa falante na minha casa, que era um sonho de minha mãe.
Meu mundo se esbarrava nas novelas.
Eu assistia a Regina Duarte beijando e sorrindo,
e pra mim aquilo ali seria o oposto de ser criança.
Ela simulava o amor e a responsabilidade de beijar.
Quem dançava bem era o Garibaldo da Vila Sésamo,
Que eu até assistia em dia de chuva.
Mas quem cresceu como eu com brincadeiras de rua,
também não trazia muito compromisso com TV.
Havia um mundo maravilhoso lá fora.
A vida gritava :
"É pra fora, leve seus brinquedos lá pra fora!"
As primeiras brincadeiras adormeceram dentro de mim.
Ficavam trancados na gaiola do meu ndotolo.

Vieram outros ventos.
Pipa, pião, burca etc.
Iniciei como café com leite, fazendo capucheta pra empinar rapidamente.
Mas eu queria ser como os grandes: ter barrilete, linha de corte.
Era preciso evoluir, sim, os brinquedos evoluem.
Mesmo porque, na época de burca, eu era já muito boa e rapelava todos os moleques.
Eu tinha o meu boticão da sorte.
Tinha uma lata enorme com a minha riqueza, que eu escondia no quintal.
Mãe podia nem sonhar que eu brincava com brinquedo de moleque.
Ela não sonhava, mas alguém sempre contava,
Ela achava minha riqueza e rebolava no mato.
Os moleques recolhiam felizes.
Mãe me fazia jurar que eu nunca mais voltaria a brincar daquilo,
eu jurava que obedecia, com os dedos cruzados.
Dia seguinte, eu tomava deles minhas bolinhas de gude e minhas burcas na praça.
De dia, eu era o terror da rua.
De noite, a caçulinha indefesa do lar.
Tempo de burca era mais fácil, de peão também,
Mas em agosto, tempo de ventos mais fortes, o insondável me provocava.
E eu queria pôr pipas a voar.
Pra isso foi preciso seguir a humanidade, ou como se diz hoje, o fluxo.

Já entrou na mata pra pegar bambu e fazer barrilete?
Com a faca de cozinha que pegou escondido das mais velhas,
que morriam de medo da caçula sofrer um arranhão.
Cortar o bambu dez vezes maior que ela e sair puxando a vara imensa de dentro
do bambuzal, tentando ser invisível.
Como será que tudo isso chegava aos ouvidos de minha matriarca?
Cortar um bambu leva, pelo menos, três horas.
Isto já era o tempo de mãe estar voltando da feira.
Mãe voltava da feira com senso de humor nenhum, bem raso.
E antes de sair, ela dizia a mim:

"Você gosta de brincar, né?
Pois então, brinque de dobrar todas as cobertas e varrer o chão do quarto,
antes de eu chegar".
Cortar bambu eu gostava mais.
E depois de cortar o bambu, tinha que dividi-lo em pedaços,
partir ele em lascas, afinar cada lasca até ela ficar flexível sem quebrar.
Se quebrar tem que fazer outra, desde o início.
Escola também era um brinquedo que nunca gostei.
Até mesmo quando a professora descreveu sobre a biruta, que é irmã da capucheta, era tão distante que jamais associei a brinquedo que voa no vento.
Deve ser porque a biruta só rodava e a capucheta era solta.
E agora, era só isso?
Claro que não!
Ainda tinha que salvar a folha do papel de seda,
que seu Fernando embrulhava o filão de pão.
Era folha única, caso ela manchasse de manteiga tinha que aguardar o dia seguinte.
Seu Fernando tinha um calhamaço delas, mas só cedia mediante a compra de um pão.
Eu até achava que se ele embrulhasse o macarrão aracy e as outras mercadorias,
Eu faria um estoque de papel e poderia vender, assim como já vendia o bambu.
Tá estranhando por quê?
Eu sou filha de vendedores,
por que não venderia aquilo que adquiri com tanto esforço brincando?

Talvez, se mãe me pagasse pra dobrar as cobertas e varrer o chão,
eu teria levado como uma brincadeira,
Teríamos sido muito mais felizes.
E eu nunca iria ter que sair correndo da brincadeira
pra esconder as cobertas sem dobrar debaixo da cama,
pra não ter que dobrá-las.
Era uma brincadeira muito chata até.
E ela não teria que ficar procurando as cobertas desdobradas,
como um pega-pega sem graça.
Por vezes muito violenta pra mim.
Eu não tinha autoridade sobre ela.
Mãe não sabia brincar.
Nunca fez uma pipa de varetas com folha de seda.
Nunca cortou rabiola de plástico pra pipa dançar no alto.
Nunca passou da fase capucheta, barrilete, réu no ar.
Nunca fez cerol depois de bater bem o vidro, até virar pó de vidro bem fininho .
Nunca sentiu a alegria de ser promovida de café com leite a gente grande
porque desvendou o segredo da brincadeira,
Que era inclusive muito sério até.

Até hoje, mãe vem em casa e pergunta:
"Não vai dobrar as cobertas?"
Não, eu vou precisar delas desdobradas quando for dormir.
Ela ainda insiste em cortar meus brinquedos até hoje.
Hoje eu fui dormir na casa dela porque a saúde dela tá num rélo só.
E não é rélo poético.
A mãe está em tratamento e a gente está brincando de ir dormir na casa dela.
Ela não quer, mas a gente vai mesmo assim.
Minha irmã disse a ela que agora é valendo, não é brincadeira,
mas eu acho que é brinquedo.
O quarto onde eu durmo traz muitos gatilhos daquele lugar, que são de toda natureza.
Será que quando alguém cavar ali vai encontrar os brinquedos que eu enterrei?
Cada cômodo da casa de minha mãe dá um bocado de poesia,
nem todas de alegria.
Mas o largo em frente guarda minha alma infante.

Hoje lembrei do Gerson.
Brigamos por causa de pipa.
Eu pisei na linha, ele puxou.
A linha com cerol subiu e cortou boa parte do meu calcanhar.
Eu tive febre, o pé quase caiu e minha mãe rezou por mim ao pé da minha cama.
Jurou por tudo o que era mais sagrado que nunca mais me daria um tapa,
caso Deus me deixasse viver.
Mãe mente, sabia?
Quando eu fiquei mais ou menos boa, eu fui lá na rua e dei uma surra no Gerson.
Trocamos murros, sopapos e pontapés, fala franca.
Dona Dina, a mãe dele, reclamou com a minha:
"Dona Maria, você não tem uma menina, tem um moleque".
'Cê acredita que mãe rompeu com o prometido?
Mãe pode brincar de prometer e não cumprir,
Porque da boca pra dentro, ela ama a gente.

Será que se eu mesma esburacar o quintal de minha mãe,
encontro pedaços de brinquedos meus?
Acho que não, porque todos eles estão recolhidos pra dentro de mim.
Um deles virou uma mangueira enorme e dava mangas maravilhosas.
Chupei muita manga verde daquele pé.
Um dia, lá em cima da mangueira, tinha uma cobra verde brincando de pular.
Foi o fim da mangueira, mãe mandou deitar a árvore.
Aí eu adotei um ratinho cinza pra criar dentro de uma caixa de sapato.
Depois que a minha mãe matou a mãe dele.
Advinha o que aconteceu quando ela achou o pequeno?
Meu pequeno filho de brinquedo.