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Café com Dona Jacira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Com a alma lavada e enxaguada

Victor Balde
Imagem: Victor Balde

26/02/2023 06h00

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Até que enfim é quarta-feira.
Dia em que, segundo dizem, começa a quaresma ou quarentena sem carne.
E quando a vida começa, se bem que a minha não para.

Acho que quem diz isso é quem curte temporada.
Eu vivo ciclos.

Hoje é dia de acordar e fazer um levantamento sobre todo o passamento dos últimos dias.
Passar um olho, sabe?
Não sem antes ouvir o hino eternizado por Martinho da Vila há anos; "Pra tudo se acabar na sexta-feira".

Glória a quem trabalha o ano inteiro em mutirão.
Para gerir, administrar, dar segurança, potencializar.
Tornar a política favorável um dia, quem sabe.

Tem uma música de Caetano que diz:
"A minha voz é minha mãe"
A minha também é.
Mas também faz eco com as vozes da minha gente.

Quem viveu os últimos dias viveu.
A gente cantando músicas de nossos jovens e nossos ancestrais.
Por aí pelas ruas, avenidas, sambódromo, no banheiro.

Em todo lugar onde foi permitido nosso bloco passou, fez um eco colorido de esperança, alegria e protesto também.

E era gente brincando e gente com barrinhas trabalhando, defendendo o seu.
Abastecendo a gente de toda sorte de alimento e bebida.

Gil também já deu a letra:
"Festa, trabalho e pão é o que queremos"
Ah! Beleza também é alimento.

Um viva a quem pra além do romantismo do mercado da beleza
Conseguiu ter pelo menos um batom, um rímel, uma roupa bonita pra servir de fantasia.
Esquecer a correria do ano todo pra manter as contas na faixa.
Ou esquecê-las.

E ainda conseguir estar bonita e ter o samba na ponta dos pés.
E ter um lugar que vale a pena ir e ser respeitado como uma pessoa, um sujeito de si mesma.
Sem ser invadido, molestado ou roubado pelo amigo do alheio.

Parabéns pra você mulher brasileira!
Homem, mulher de todas as regiões e lugares que cumprem seu papel na potencialização dos nossos.
Olha.

Aqui na Zona Norte a chuva fez seu papel.
Choveu intensamente de sábado pra domingo.
Quem quis ver viu de perto a terra da garoa sendo ela mesma.

Mas São Jorge pediu com todo cuidado para as nuvens recuarem.
Pra esta brava gente brasileira passar enfeitado e feliz.

E a garoa amanheceu no domingo, mas parou atendendo o pedido do mestre.
Pra gente passar no cortejo sequinho.
Molhado só de suor e cerveja.

Ela se fez imensamente obediente e parou.
Eu fui feliz, muito feliz.

Eu cantei no bloco LAB no domingo de tarde.
Sei que já sabem de tanto eu falar.
Sei que já disse semana passada, mas não canso de dizer o quanto foi ou fui feliz.

E olha que desta vez preciso dizer, senão nem seria eu.
Anos atrás quando a gente ia se divertir as invejosas vozes diziam:
"Cadê as crianças?"

Elas ainda perguntam, não a mim, a outras pessoas.
Não que seja da conta delas, nunca foi.
Mas desta vez minhas quatro crianças estavam ali comigo.
A resposta estava dada.

Aqueles que tentam nos impedir de ocupar espaços de poder também fizeram suas aparições entre nós com suas mazelas de pensamento e ação.
Mesmo assim passamos.
A gente não tem um segundo de paz.

Mas como diz minha mãe:
"Sorria, finja que está tudo bem, confunda o inimigo que ele não sabe o que é ser feliz de verdade".

Concluímos nossa festa dando nossos recados.
De alma lavada.

E seja no sambódromo ou pelas ruas e avenidas a festa aconteceu.
Cada lugar tem sua forma de desabafo e alegria de alguma maneira.

Hoje as comunidades voltam a seus afazeres.
Repensando como será a próxima festa.

E já pegamos uma Baixada Santista em estado de calamidade.
Rouba a brisa da gente, porque sabemos o porquê de tudo isto, ganância.
Teremos que unir forças pra ajudar gente que perdeu tudo.
Mas tudo mesmo, muito além de colchoes e bens palpáveis.

Tem gente que perdeu ali a razão de sua própria vida.
A lama levou consigo parte de seus sonhos, arrastando a dignidade de muita gente estrada afora.
Abrindo uma estrada imensa de mazelas que parecem não ter fim.

Mas vai passar, porque temos o dom do recomeço e da luta.
Não por romantismo, mas por necessidade.
Porque a gente só morre quando chega a hora e até lá é preciso viver.
E ser mais do que barro e pó.

Enquanto isso nós também seremos convocados.
Vamos ter que ajudá-los a entender e voltar a si pra voltar a viver de novo.
Mesmo machucado.

Ano que vem a festa de momo volta.
Tudo sempre volta,
Mas antes precisamos batalhar incessantemente para vencer a guerra sutil à nossa volta.

Nós, pessoas reais, temos a incumbência de lutar pelo que acreditamos.
Amparar os mais fracos.
Pela diversidade.
Pra pôr fim na exploração do humano por alguém desumano.

Lutamos lado a lado com os caricatos, pessoas privilegiadas que se recusam a entender que não é não.
Que meu corpo é meu.
Que eu também tenho direito de circular.
De comer decentemente.
De morar ou permanecer num lugar sem risco.

Que muito ouro e poucas árvores não é bom pra ninguém.
Que muito prédio sem infra estrutura só vai dar ruim em algum momento.
Que higienização não é progresso.
Que as civilizações que vivem dentro do mato preservam a natureza e têm direito sobre suas vidas e suas terras.
Que útero de animais não é e nem nunca foi emprego, e que uma hora a modinha acaba, enfim.

Hoje nós, povos reais, voltamos à pista de verdade.
Glória a quem trabalha o ano inteiro neste mutirão.
Escultores, pintores, bordadeiras, pajens, domésticas, feirantes, enfermeiras. Carregadores de coisas, motoqueiros, carpinteiros, vidraceiros, costureiras, figurinista, desenhista, artesão.
Gente empenhada em construir a ilusão.
Todos agora retornam a vida como exército de reserva.

Eu volto também e volto contente.
Contente não quer dizer satisfeita.
Tem gente que tem atitudes que não me desce.
Estamos de olho.

Alô comunidade!
O espírito é de luta.
Não se engane.

Mas como foi bom encontrar gente feliz querendo tirar fotos comigo.
Como foi bom olhar lá de cima de comunhão e encontrar com o olhar de todos vocês ali.
Brincando, cantando, curtindo a tarde em paz.
Como é bom estar realizando as vontades, pelo menos algumas.

Está longe o tempo que ainda vai chegar em que a vitória de uma escola de samba melhore a situação de seus componentes mais pobres.
De quarta de cinzas ao próximo grito no ano que vem tem uma longa fita métrica de patriarcado a vencer.

Agora com as energias renovadas vamos dar o possível pra realizar nossas metas.
Quem é de luta sabe disso.

Sabe que pra nós, a alegria mesmo é voltar pra casa, encontrar nossa família bem e com saúde.
O aluguel pago.
A feira garantida.
O mercado resolvido.
Luz, água, telefone, internet, tudo nos conformes.
Se entender com esta moeda flutuante e vacilante capitalista excludente.
Isto sim é que é de uma beleza interior sem limites.

O bem dos nossos estará sempre em primeiro lugar.
Eu tenho muito a agradecer.
Mas ainda luto, porque ainda existir injustiça social e falta de inclusão.
A felicidade não é plena.
Insisto que em 2023 tive um sonho realizado.
E desejo a vocês que esse ano seja melhor pra todos nós.
E digo com a alma feliz, lavada e enxaguada.
Axé.