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Café com Dona Jacira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Pode ser ele

Victor Balde
Imagem: Victor Balde

07/11/2021 06h00

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O rameleiro é um homem do tamanho de uma montanha que tem os braços do tamanho de um trem inteirinho, os pés dele são enormes, do tamanho dele, e as mãos são galhos enormes cheios de espinhos que se agarram onde encostam. Mas ele é grande de dia, de noite, quando ele sai pra trabalhar após ser beijado por sua mãe, ele se torna miúdo, bem miúdo, ao ponto de passar por um buraco de fechadura das mais estreitas. Ah! Ele carrega um balde maior que ele, instrumento de seu trabalho, cheio de um líquido viscoso, uma cola que os mais velhos chamam ramela, é verde e mole, mas vai ficando translúcida assim que amanhece. O trabalho do rameleiro é marcar com ramela gente e bicho que ao olhar dele mente ou faz bizarrices que ele discorde. Ele chega à socapa da noite, bem na beiradinha da madrugada, a beirada da sua cama, e sem dó tasca-lhe uma pincelada de líquido viscoso a ramela. Você não vê ou sente, continua dormindo e segue até amanhecer, e só então se percebe enredado, todo colado, às vezes pega olho, nariz, boca e inclui até a baba no travesseiro. Tem como se livrar? Tem sim. Ao acordar, corra para lavar o rosto rapidinho e se esconda entre os demais mentirosos que lavam o rosto cedo, que do olhar do rameleiro ninguém escapa. A bisa contou tanto esta estória pra gente que Nico, meu moleque que sempre levantava cedo pra ficar mais tempo acordado, já lavava logo o olho, ou esfregava eles muito bem pra tirar todo biscoito. A bisa chamava de biscoito esta fuligem que nos sai da pele de quando esfregamos sem parar, mas o rameleiro não é bobo, ele deixa um cheiro também, o perfume dele. Então, a única forma de se livrar dele é lavando bem o rosto.

O que seria de mim sem as estórias de perto? Imagine alguém tão grande que passa pelo buraco de uma fechadura, assim foram algumas de minhas formações de contadora de estórias atalibanas com minha bisa.

A mulher do capitão. Capitão aqui não é patente, é um bolinho feito com sobras da janta e farinha, tudo juntado numa frigideira e amassado pelas mãos dela, que a gente comia no café da manhã enquanto ela tomava leite com sal. Nunca que eu pensei que fosse precisar lembrar destas coisas como faço hoje, mas é que elas não saem de mim e passam para os meus, até mesmo sem eu querer, vão a se espelhar aos ventos, adentram ouvidos que querem ouvir. A bisa sempre dizia a minha mãe que "Tudo o que cura corpo e espírito é sim medicina", ela queria dizer que: Homeopatia, benzimento, estórias, banhos, encontros espirituais que renovem as energias e nos mantenham saudáveis são sim modos de cura. Muito embora ela apostasse na existência de um tal demônio lá dela, e numa nuvem da salvação, às vezes nos queria até cometendo um pecadinho ao jejum obrigatório. Rolando na terra, na grama, como forma de saúde e noutras ela sofria da doença de extrema esterilização, cozinhando uma arvorezinha de brócolis por um dia inteiro para matar um bicho que o homem sábio falou no rádio. Cá entre nós, o simples ouvir, emprestar os ouvidos a súplica de outro pode proporcionar, neste exercício de escuta, o exercício do tão buscado e maltratado curandeirismo que a igreja chama pecado, e nós desumanizados e desencorajados recorremos a ele sempre que possível. Hábito antigo, presente em nosso meio desde a antiguidade, vinda das mãos curativas de nossos ancestrais e que agora, na diáspora, precisamos libertar todo tipo de cura da especulação. Gaiarsa já disse que só a fofoca é verdade, eu creio.

Descolonizar as práticas de cura é necessário, contar estórias possíveis e locais é até mais interessante. Lembro da estória de furnas, esta empresa enorme cheia de ferros que se estende e abarca entre nós. Diziam no passado que se acaso ela explodisse, engoliria a região todinha e não sobraria um só vivente pra recontar. Nos cinquenta anos que moro aqui, a pedreira nos ameaçou muito, inclusive derrubando nossas casas uma a uma, e agora criando até uma lei que defenda ela, a pedreira. Já a ferragem de furnas pegou fogo duas vezes, na primeira muita gente correu sem saber para onde, na segunda aproveitamos a possibilidade de estar longe do olhar de mãe, que se preocupava com o fim de nosso mundo, e fizemos várias artes. Misturamos os mundos até, como fez a Rainha de Sabá e Jó, e desde então, seguimos vivendo em volta da usina, o almoço é radiação, café e janta também. No entanto, a cada vez que sentimos medo, seja com o rameleiro ou com o fim do mundo, recriamos a própria essência e voltamos para casa.

Essência, nada mais é que um sistema de defesa que todo vivente tem, seja pessoa, bicho ou planta. Sua utilidade é proteger e preservar a si e a sua comunidade próxima, sobrando aí um tanto de seiva, há que se dividir com vizinhos um tanto mais distantes de si, mas é preciso cuidar para que não acabe, é preciso protegê-la. A essência vem da raiz ao caule, segue para folhas e se submete aos ventos, se vencer e sobreviver há de ir as folhas e as inflorescências guardando se em si enquanto gesta o fruto, após ser fecundada por um inseto, ninguém se faz sozinho. Ela cede o néctar, e a abelhinha que faz o contato sexual no pistilo e vai de flor em flor sem invadi-la, penetrando apenas as flores que a convidam abertas. Todas elas estão em simbiose para ver o rebento chegar firme e forte. Assim são as pessoas, as comunidades a proteger seus rebentos, sem essência não se faz um bom mel. A distância desanda o melado, assim era a mala da minha bisa a alimentar-me do mel de suas estórias. Eu, a contadora do futuro, fiz meu filtro e sigo, outras pessoas investiram em mim, aqui mesmo na minha região, de quando o SUS nem existia e as pessoas do lugar curavam-se a eles e a nós.

Seu Ozório era o garrafeiro, o homem das mezinhas, Dona Maria Preta com toda espécie de folhas, rezas, banhos e chás, mãe com seu alho para espantar lombrigas e defumação para saúde da casa e do corpo. Tinha remédio pra tudo, só não tinha quando Icu, o espírito derradeiro da morte, vinha buscar alguém, e tudo se fazia contando estória do lugar, e a gente tinha medo e vontade de aventurar, depois assentou. Fora isto, a vida corria, posso dizer que moramos meio que no campo numa região que outrora era de agricultura, a vida no campo é um sonho. Olhar pra cá, mato, olhar pra acolá, natureza viva e morta, natureza. Olhar para ali passarinho, coqueiro, bananeira, borboleta e lagarta. Que bonito é se sentir abraçado pela natureza, por um ambiente inteiro, terra, vento, pedras, poeira, fauna, flora, fungo, copas, raízes e som, mas a gente queria progresso, asfalto, luz elétrica, água encanada, nosso maior fantasma era ser chamados de atrasados. Nem tudo é maravilha, temos a pedreira barulhenta, que por muitos anos nos dizia a hora no explodir de dinamites, sempre às onze da manhã e às cinco da tarde. Dormíamos neste barulho e dormíamos bem, acho até que foi ele que espantou o homem da ramela, com seus caminhões imensos levando pedras a outros mundos e soterrando nosso mundo. Aqui no pé de serra, onde a gente vévi, estamos entre o conflito, o conforto e o confronto queremos, progresso, mas temos medo do entulho que ele traz. O rodoanel, só ele, já desabrigou muitos viventes aqui do bairro e até hoje não funciona, a gente deu outro significado a ele, quem não curte acordar cedo despreocupado, andar descalço, caminhar sobre a areia branquinha da praia, tomar banho de cachoeira, fazer exercício e cochilar depois de uma boa refeição, o rodo é nossa praia. Hoje o progresso é o nosso fantasma, mas a gente se reinventa e usamos o espaço inutilizado para outros fins, ginástica, corrida, interação social. Pra mim já poderia tirar o exercício, sou sedentária, trocaria por um forrozinho, e pescar então, quem nunca. Tá aí outra coisa que não gosto, sou ruim até pra companhia pra quem curte lavar minhoca. Ioga e meditação são coisas que não me assentam, tenho faniquito, minha cabeça vira buscando agito, fica variando, oscila muitas vezes, sente falta de algo para labutar, um trabalho, uma mão de obra, fila passeata.

Essências nossas que não têm preço, pra qualquer outra essência há de se comprar em vidrinhos de 5 ml, já que eu não vendo a minha, acho importante perguntar, de onde vem? De onde é seu estado selvagem? É sazonal? É endêmico da região? É brasileiro? Se é brasileiro, a qual região pertence? Quem envasa e filtra a essência consegue fazer três refeições ao dia ao menos? Seus filhos, se os têm, estudam? Onde e como vivem?

Parece bobagem, mas no futuro, para que mais pessoas não venham ser escravizadas com a nossa "ajuda", é preciso tomar este cuidado de saber quem está me vendendo. É preciso contar a história da feitoria das coisas a nossos mais jovens até pra incutir no seio deles o amor pelas coisas feitas com as próprias mãos. Precisamos do capitalismo, mas ele sufoca e distância, dou como exemplo o limão, que segundo eu li, vem da Turquia. Gosto tanto de limão que custo acreditar que não são endêmicos brasileiros, na mala de estórias junto com o rameleiro muitas coisas viajam, uma delas é a tia que é louca por mudinhas de plantas. E de visitas a casa de pobre, ninguém sai incólume sem antes tomar um cafézinho com bolo de cenoura ou torta de sardinha, ganhar um pintinho ou um filhote de gato ou cachorro e uma mudinha de manjericão, e se a arruda murchar um convite pra ir se tratar numa casa de santo, tratar o ori. Sagradas tias loucas por plantas, está bem na hora de questionarmos este mercado antes que a gente, com nossas boas intenções, coloquemos fim à floresta, com a última pá de cal nos territórios que são vitimados pelos exploradores. Lembre que no passado ser explorador já foi considerado ser herói, hoje não mais, lembre de Atlântida que sucumbiu numa ressaca quando seus habitantes perderam a humildade e passaram de comerciantes marinhos a conquistadores, invadiram regiões para além dos chamados pilares de Hércules, hoje estreito de Gibraltar. Dominaram diversos povos de partes de África e Europa, escravizaram povos nativos e seguiram avançando, expandindo até ameaçar a si mesma e sucumbir. Eles se perderam das estórias de quintal de suas bisas e da tão bela mitologia grega. Ninguém tolera agressão por tanto tempo, e há que se conhecer a língua do inimigo para entender que é preciso criar frentes de libertação. Basta de conquistadores da nossa humanidade, ela é inegociável!

Afinal, não queremos mais nem estátuas destes tais exploradores de tanto que eles ferem as populações que são exploradas, por onde passam com sua sanha por progresso, asfalto e água de garrafa, com estórias de fome, sede e alimentos processados, sem se importar com os ambientes que passam a ser acometidos pela seca, miséria depois de sua passagem. Tem gente que conhece mais de mil plantas e estórias. Eu fico contente conhecendo as meia dúzia que tenho no quintal que já me dão um prazer imenso. Eu, que já faço sabonete há trinta anos, estou já há algum tempo pesquisando e descobri que é raro o lugar onde vende óleo essencial brasileiro, por que será? Que nossas estórias fogem de nós, quem as leva? Era pra ser só mais uma estória de bisa, mas não é. É sim um manifesto a favor da descolonização das práticas de cura, da soberania alimentar, e das nossas estórias regionais. Já temos nossas próprias fantasias, bruxas e folguedos para passar à frente. Faça sua parte, senão pode até ser que o rameleiro vá até você um dia destes, ele não bate na porta. Dúvidas? Volte ao início do texto.