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Anielle Franco

Pelo direito de contar nossas próprias narrativas

Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

10/08/2020 04h00

Afrofuturismo, Beyoncé, antirracismo, branquitude.

Todas essas palavras juntas movimentaram o imaginário de muitas pessoas nas redes sociais na última semana, repletas de significados próprios, embasamento teórico e histórias. Elas também foram o motivo da minha vontade de avançar neste debate, através de uma perspectiva específica que me corta diretamente: afinal, por que a habilidade de contar nossas próprias narrativas gera tanto incômodo?

É importante entendermos que os processos que moldam a sociedade em que vivemos são baseados em lógicas extraídas de nosso passado colonial recente. Nessa sociedade, onde as mulheres negras têm suas histórias expropriadas, roubadas e cooptadas por uma branquitude que a coloca a seu serviço, o fato de existirem mulheres negras que são protagonistas, autoras e porta-vozes de suas próprias vidas é um ato político, e torna-se uma ousadia.

Aprendermos a nos organizar, não a partir do outro, mas a partir de nossas próprias referências de sociedade, poder e afeto, é sem dúvida uma das maiores rupturas que nós, mulheres negras, podemos exercer.

Foi a escritora nigeriana Chimamanda Adichie que nos alertou sobre o perigo de contarmos uma história única. A visão de Chimamanda dos efeitos da colonização sob a construção de nossa imagem molda o que estamos discutindo nos dias de hoje. O direito de construir nossas próprias narrativas e histórias é uma forma de poder, e esse poder - por muito tempo - esteve concentrado nas mãos dos colonizadores, que comandam as amarras racistas que orientam o mundo, até hoje.

A partir desse controle exercido sob a narrativa negra, princesas racistas foram marcadas como abolicionistas, sinhás foram intituladas de "aliadas", colonizadores foram alçados à condição de heróis, povos culturalmente ricos foram reduzidos a dor e sofrimento. Ainda sentimos o reflexo do tempo dos senhores de engenho, quando lideranças como Marielle - por vezes - tiveram suas histórias apropriadas forçosamente e, ainda hoje, temos exemplos de como os efeitos perversos deste controle pode influenciar nossas perspectivas de vida, futuro e libertação.

E se esse direito de narrar e construir nossa própria memória é a expressão de poder, é entendível o "porquê" da branquitude (que age como se todos os lugares, concretos e simbólicos fossem seus) atuar desqualificando a forma com que escolhemos contar nossa história através de nossos ancestrais oriundos de África.

Afinal, o poder em nossas mãos é uma grande ameaça à hegemonia branca que domina os espaços formadores de opinião e o estereótipo do pensamento crítico em boa parte do mundo.

Porém, eles não podem parar a revolução preta em curso.

Esta revolução que estilhaça as correntes de controle da branquitude através de cada mulher negra que coloca sua potência e resistência como guia para a direção de sua vida. Assim, fortalecendo a percepção de que nossos corpos e mentes não são mais reféns de uma história única que nos aprisiona na dor e sofrimento, que somos muitas e muitos frutos de processos coletivos, repletos de afeto, resiliência e ancestralidade. Não iremos retroceder e seguiremos contando nossas próprias histórias.