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Cannabis para síndrome rara: 'Após 1ª dose, foram 11 dias sem convulsões'

Clárian Carvalho usa cannabis medicinal, plantada em casa, para tratar síndrome de Dravet Imagem: Arquivo pessoal da família

De VivaBem, em São Paulo

22/04/2024 04h05

O governo do estado de São Paulo regulamentou a distribuição de canabidiol pelo SUS (Sistema Único de Saúde) em dezembro do ano passado. Três condições podem ser tratadas com a substância: síndrome de Dravet, síndrome de Lennox-Gastaut e esclerose tuberosa.

Mas há dez anos, antes que houvesse legislação e indo contra as regras vigentes da época, os pais de Clárian Carvalho já usavam óleo de cannabis como parte do tratamento da menina.

Diagnosticada com síndrome de Dravet, que com o passar do tempo se mostrou resistente aos medicamentos tradicionais, a família buscou de forma ilegal e depois na Justiça o direito de dar melhor qualidade de vida à filha.

A VivaBem, María Aparecida Felício de Carvalho, mãe de Clárian, conta essa história.

"A Clárian começou a convulsionar com cinco meses e meio de idade, em 2003. A primeira convulsão foi de madrugada, às 2h, quando percebi que ela estava febril e o olho começou a revirar, mas não sabia que era convulsão.

Chamei meu marido, vimos a boca dela roxa e corremos para o hospital. A médica foi com ela para a emergência dizendo que ela tinha tido uma parada cardiorrespiratória. Aquilo foi muito traumatizante para nós.

Quando ela estava com um ano, nossa vida virou de cabeça para baixo. Eram várias internações, convulsões muito severas, uma pior do que a outra. Como ela sempre convulsionava com 37ºC de febre, a neurologista começou a tratar como síndrome febril plus. Mas nenhum medicamento dava resultados.

Ela costuma convulsionar por uma hora e meia, mas com três minutos já íamos para o hospital, senão tinha risco de parada cardiorrespiratória.

Diagnóstico com teste genético

Quando ela estava com 4 para 5 anos, a neurologista começou a desconfiar que fosse síndrome de Dravet, porque a síndrome febril plus melhora com o tempo, mas no caso da Clárian não foi assim.

A médica me incluiu numa pesquisa genética de doutorado da Unicamp. Levei minha filha lá quando ela estava com 8 anos e o resultado, com diagnóstico da síndrome de Dravet, saiu quando estava com 10 anos, com exame do exoma [que busca alterações genéticas em o genoma humano].

A neurologista testou vários coquetéis de anticonvulsivantes, tem uma lista grande. Um remédio que ela usou diminuiu um pouco a frequência das crises, a quantidade, mas não dava os resultados esperados.

Clárian teve refluxo gastroesofágico, problema nos rins, mais de 14 pneumonias e quatro atelectasias (colapso do tecido pulmonar).

Ela sempre fez terapia ocupacional e fisioterapia para poder sentar, sustentar o pescoço, engatinhar e andar porque ela tinha hipotonia (tônus muscular enfraquecido).

Ela não corria, não pulava, não subia escada e não suava. Em dias de calor, ela ardia tipo febre, porque não tinha sudorese para equilibrar a temperatura do corpo.

No verão, tinha que colocar ela em uma piscininha de água fria, e eu não podia entrar com ela em lugar abafado, senão já esquentava e convulsionava.

Cannabis como alternativa complementar

Em julho de 2013, em uma das minhas buscas na internet por uma pesquisa ou substância que pudesse tirar a minha filha do risco de morte súbita, encontrei o caso da Charlotte Figi, dos EUA, que tinha a mesma síndrome da minha filha e tomava óleo da maconha.

Falei para o meu marido sobre pegar na "boca", o acesso ilícito, e ele concordou. Mas li sobre o THC, que podia ser perigoso, e fiquei com medo. Tudo que via sobre isso mandava para a neurologista dela, que falou que era sensacional, mas não podia ajudar, porque era ilícito.

Clárian com os pais Fábio e María Aparecida Imagem: Arquivo pessoal da família

Em novembro de 2013, a médica falou que iria para um congresso em Boston sobre uso de cannabis para Dravet e nos chamou para conversar na volta. Ela foi a única que acreditou.

Tentei importar de forma ilegal e consegui no início de 2014. Era uma pastinha que vinha em seringa e custava US$ 500.

Minha filha começou a tomar no dia 26 de abril. Quando dei a primeira dose, ela ficou 11 dias sem ter convulsões; o máximo que ficava eram quatro dias.

Cada mês que passava, ia diminuindo a quantidade de crises. Hoje, aos 20 anos, ela tem uma ou duas crises por mês e convulsiona por menos de um minuto. Nenhum outro tratamento fez isso. Vai fazer dez anos que ela usa o óleo e dez anos que nunca mais precisou ser internada.

Ela teve alta da fisioterapia, continua com terapia ocupacional e psicólogo. Consegui diminuir 70% dos medicamentos, que ela ainda toma porque morro de medo de tirar tudo e ela ter convulsão severa.

Cultivo próprio

Em 2014, conheci uma rede secreta que começou a doar o óleo para a Clárian e forneceu por três anos. No mesmo ano, ganhei sementes de maconha, comecei a cultivar e em 2016 entramos na Justiça pedindo o direito de cultivar.

O advogado alertou sobre a possibilidade de a polícia chegar na nossa casa e sermos presos, mas nossa preocupação não era essa. Era de destruírem as plantas na fase de colheita. Em dezembro, recebi minha liminar para cultivar.

Hoje, ela segue tomando o óleo que fazemos em casa. Como cultivamos, temos certeza que é orgânico, sabemos a cepa e como preparamos. Já sei a variedade da planta que vai dar melhor resposta para minha filha."

O que é síndrome de Dravet?

A síndrome de Dravet é uma patologia neurológica, de difícil controle, associada a quadro neuropsicomotor.

É uma condição genética causada pela mutação no gene SCN1A, que ajuda na comunicação entre os neurônios. Quando há falha, favorece crises epilépticas.

Em paralelo, há interferência no desenvolvimento cognitivo, comportamental e motor, em graus variados.

O diagnóstico é feito com base no histórico clínico e com exames como eletroencefalograma, ressonância magnética e teste genético.

Caracterizada por estágio febril na infância, tende a começar até os 18 meses de idade e estabilizar por volta dos 5 anos.

Segundo o neurologista e neurofisiologista Gustavo Mercenas, a síndrome se enquadra nos 30% dos diagnósticos gerais de epilepsia que não respondem bem aos medicamentos. Quando isso ocorre, é chamada de refratária ou farmacorresistente.

O médico João Paulo Cristofolo Jr., sócio-fundador do Grupo Conaes Brasil, diz que o objetivo do tratamento é diminuir a frequência e a intensidade das crises convulsivas.

Primeiro, são usados medicamentos apropriados ao quadro. Mas depois de duas linhas de tratamento, se não houver resposta satisfatória, o CBD (canabidiol) pode ser usado como remédio complementar.

"É muito importante ter uma abordagem integral, não só dar canabidiol", afirma. Por isso, além do remédio à base de cannabis, o tratamento segue com os medicamentos tradicionais e terapias não farmacológicas necessárias.

Como o CBD age?

O corpo humano possui o sistema endocanabinoide, cujo mecanismo ainda não é totalmente esclarecido.

"Em vários lugares do nosso corpo, particularmente nos neurônios, tem alguns receptores canabinoides e é provável que a função deles esteja relacionada ao controle de transmissão entre os neurônios, as sinapses", explica Mercenas.

O CBD agiria nesse ponto, melhorando a troca de informações entre os neurônios. Diversos estudos buscam compreender melhor a ação da substância, que pode ter efeitos anti-inflamatórios, como ansiolítico e anticonvulsionante.

Para a síndrome de Dravet, um estudo publicado em 2017 testou o uso de canabidiol para o tratamento de convulsões resistentes a medicamentos

De 120 crianças e adultos jovens recrutados, 61 receberam CBD com tratamento antiepiléptico padrão e 59 receberam placebo. Mas 108 pessoas completaram o período de tratamento de 14 semanas.

Nesse tempo, 43% dos pacientes que tomaram canabidiol reduziram a frequência de crises convulsivas pela metade; o mesmo ocorreu com 27% dos que tomaram placebo.

No grupo com CBD, 5% ficaram livres de crises; no grupo placebo, nenhuma pessoa ficou totalmente sem crises.

Os médicos explicam que, ao reduzir as crises epilépticas, outros áreas afetadas pela condição melhoram, como o sono e o desenvolvimento neuropsicomotor. Mas alertam que nem todas as pessoas vão ficar livres ou reduzir as crises com canabidiol.

Assim como a medicação, ele pode ter efeitos colaterais, é metabolizado no fígado, interage com outras medicações. É importante que seja usado de maneira supervisionada, por um profissional, que não seja feito tratamento empírico. Gustavo Mercenas, neurologista

Indicação adequada

Com a permissão para distribuir remédios à base de CBD pelo SUS em São Paulo, Cristofolo Jr. reforça a necessidade de os médicos saberem prescrever a cannabis medicinal.

Isso inclui conhecer o sistema endocanabinoide do corpo humano, o equilíbrio do organismo, onde a substância age, como dosar, efeitos colaterais e interação com outros medicamentos.

"Nunca se inicia cannabis de primeira, porque o paciente pode estabilizar com outras drogas. Tem de esperar a falha terapêutica de outros medicamentos que são aprovados para aquela doença para incluir cannabis, muitas vezes não sozinha e gradualmente", diz o médico.

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