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Ela se vestiu como menino por 10 anos para driblar machismo no Afeganistão

Nilofar Ayoubi viveu 10 anos como menino. Ao menstruar, teve dificuldade de assumir a identidade feminina Imagem: Arquivo pessoal

Sofia Pilagallo

Colaboração para Universa

26/02/2024 04h05

Nilofar Ayoubi era apenas uma criança quando sentiu na pele o peso de ser mulher. Aos quatro anos, um episódio de violência nas ruas de Kunduz, no norte do Afeganistão, mudou para sempre o rumo da vida da jovem, que ficou marcada pelo trauma.

Em um ato de desespero, o pai pegou uma tesoura, cortou o cabelo de Nilofar na altura das orelhas e decretou: dali em diante, a filha assumiria uma identidade masculina. Assim ela viveu por quase uma década. Hoje, 23 anos depois, ela conta sua história a Universa:

"Meu nome é Nilofar Ayoubi, tenho 27 anos e sou uma sobrevivente do regime talibã. Hoje moro na Polônia, mas vivi a maior parte da minha vida no Afeganistão. O país ficou livre das garras dos radicais por 20 anos, período marcado por muito progresso e liberdade para as mulheres. Mas, mesmo naquela época, o trauma me assombrava, e nunca consegui sair de casa sem usar o véu islâmico. Logo você vai entender por quê.

Minha história começa aos quatro anos de idade, quando sofri um evento traumático que mudou o rumo da minha vida. Não me lembro o dia exato em que isso aconteceu. Mas sei que era um dia como outro qualquer nas ruas de Kunduz, no norte do Afeganistão. Estava brincando quando um homem desconhecido se aproximou.

Ele me violentou três vezes. Primeiro, apalpou meu peito em busca de "sinais de feminilidade". Depois, me agrediu no rosto com tamanha violência que me fez cair no chão. Por fim, me ameaçou. Disse que se não usasse o véu islâmico, o próximo alvo seria meu pai.

Corri para casa aos prantos e contei à minha família o que acabara de acontecer. Meu pai, furioso, pegou uma tesoura e cortou meu cabelo na altura das orelhas. Depois, pediu à minha mãe que me vestisse como um menino. Assim eu vivi por quase uma década, até meus 13 anos.

Para ser sincera, ainda não sei avaliar se foi uma experiência boa ou ruim. Depois daquele dia, comecei a viver da mesma maneira que meus irmãos homens e conheci o mundo real. Fui exposta ao lado solar e sombrio da vida. Mas, o que quer que essa experiência tenha sido, ela me ensinou uma lição: não deixar que os outros me deem ordens ou ditem como devo viver.

Descobri na pele a diferença entre viver no corpo de um menino e de uma menina. Quando ainda era Nilofar, não podia sequer ficar perto dos meus primos homens ou conversar com eles. Não podia me comportar de certos jeitos perto dos homens da minha família. Já como Wahid —ou Zmaray, nome pelo qual meu pai me chamava— tudo era permitido.

Podia sair na rua sempre que me sentia entediada em casa. Podia ficar lá fora e brincar com meus amigos homens. Em casa, todos sabiam que eu era uma menina, claro. Mas o fato de me vestir como menino me dava essa liberdade.

Percebi também que minhas irmãs passaram a precisar de mim para certas coisas. Coisas básicas, como comprar algo na farmácia ou no mercado. Até mesmo minha mãe contava comigo para desempenhar essas tarefas.

Ainda nos dias de hoje, a diferença entre minhas irmãs e eu é nítida. Elas são típicas donas de casa: sabem cozinhar e deixar uma casa muito bem arrumada. Também são mulheres educadas e elegantes. Fui criada em um ambiente onde tudo me era servido de bandeja. Até meus 13 anos, nunca fiz nada dentro de casa, assim como meus irmãos.

Imagem: Arquivo pessoal

Na minha sociedade, se você é mulher, você é automaticamente escrava dos homens da sua família. Não importa se ele é dez anos mais velho do que você ou se é um recém-nascido. Ele é um homem, então você deve servi-lo. Isso é o que se aprende até nas melhores famílias. Meu falecido pai, que nos deixou há oito anos, era um grande homem e nos passou valores importantes sobre respeito.

Em um país conservador e fundamentalista como o Afeganistão ter uma família acolhedora é tirar a sorte grande. Mas, em meio a tantos tabus, cresci sem saber coisas básicas da vida —por exemplo, que mulheres menstruam. Fui descobrir isso aos 13 anos.

Em um primeiro momento, vi aquele sangue e pensei que tivesse me machucado. Isso porque eu praticava judô e caratê —sem a aprovação da minha mãe. Ela dizia: 'Você é uma menina, não pode fazer essas coisas'. Mas eu não dava ouvidos. Então a primeira coisa que pensei ao olhar para a calcinha foi: 'Minha mãe vai me matar'.

A minha sorte é que, entre todos os meus amigos homens, tinha Weiss. Assim como eu, ela também era uma menina na pele de um menino. O nome real dela era Nagma, mas a chamava de Weiss. Nós éramos vizinhas e estávamos sempre juntas. Foi Weiss quem me explicou que não havia me machucado —só tinha ficado menstruada.

Lembro de como ela reagiu quando contei a ela. Estava tão preocupada, realmente aterrorizada. Ela começou a rir de mim, e então perguntou: 'Sua mãe não te ensinou sobre isso? É normal, acontece'. Depois me ensinou a usar um absorvente. Hoje não mantemos mais contato, mas ouvi dizer que ela se casou.

Por um tempo, tentei esconder da minha mãe que já tinha menstruado. Sabia o que aconteceria se contasse a ela. Mas, como era de se esperar, um dia ela descobriu, e deu início ao meu processo de transição. Resisti muito no começo. Demorei anos para me aceitar como mulher. Usava roupas largas para não exibir minhas curvas e odiava usar vestidos. Sentia como se não conseguisse respirar.

Chorava para a minha mãe. Pedia: 'Por favor, não me faça usar isso'. E então ela vinha, me dava um beijo e me dizia: 'Sei que é difícil, mas tente fazer esse esforço'.

Hoje sou casada e tenho três filhos: duas meninas e um menino. Adoro meu lado feminino e amo a mulher que estou me tornando. Mas foi um longo processo. Não me encaixava em grupos de mulheres e, para ser sincera, até hoje não me encaixo.

Muitas vezes, nos eventos de família, minha mãe precisava me tirar das rodas dos meninos. Ela dizia: 'Sai daí! O que você está fazendo? Você não é mais um menino. As pessoas vão comentar'. E então vinha aquele sentimento de culpa. Era muito difícil.

A principal questão para mim era que eu não gostava da ideia de me tornar uma mulher. Como um menino, eu tinha liberdade. Imagine a sensação de ser vista como um ser humano completo —e então, de uma hora para outra, ser reduzida a meio ser humano. Ninguém quer ser cortado pela metade. Por isso, assumir minha identidade feminina foi um processo muito difícil.

Na época, o que me trazia algum conforto era saber que o país estava avançando muito em relação aos direitos das mulheres. Nós estávamos indo a 100 quilômetros por hora. Acredito que, dentro de dez anos, teríamos alcançado o mesmo patamar de desenvolvimento de muitas nações da Europa. E então, de repente, foi como se tivéssemos retrocedido 60 anos.

Imagem: Arquivo pessoal

Sob o regime talibã, mulheres não podem estudar, trabalhar ou sequer ocupar lugares públicos. Foram reduzidas a donas de casa, escravas de homens e objetos sexuais. Esse pensamento certamente vai contaminar toda uma geração de meninos que estavam finalmente abrindo a cabeça para várias questões. Agora, não sei quanto tempo levará para desconstruir essa narrativa.

Ser mulher sob o regime talibã é como nadar com tubarões que já provaram sangue. Eles sabem o sabor de ter poder sobre as mulheres e não querem abrir mão disso.

Antes do Taleban, eu administrava cinco negócios de sucesso e tinha cerca de 500 mulheres trabalhando para mim. Meu ativismo era promover a independência financeira de mulheres por meio da geração de empregos. Também tinha uma instituição de caridade pela qual ajudava 15 mil famílias com alimentação e despesas médicas, como cirurgias e tratamentos de câncer.

Meu propósito sempre foi fazer a diferença na vida das pessoas. Então, quando o Taleban voltou, não tive alternativa a não ser fazer o que estava ao meu alcance. Tentei ajudar cerca de 100 mulheres a sair do Afeganistão com segurança. Fui ameaçada e cheguei a ficar jurada de morte. E então fui salva por um jornalista aguerrido e generoso que usou de todo o seu poder na mídia para pressionar o governo a me colocar em um avião.

Hoje, na Polônia, ganho a vida com um restaurante de culinária afegã, mas tenho outras atividades. Recentementem fui eleita secretária-geral do Congresso Mundial da Liberdade, uma instituição composta por líderes de 56 países que luta contra regimes ditatoriais pelo mundo.

Também administro um pequeno jornal sobre notícias do Afeganistão e estou trabalhando duro para conseguir bolsas de estudo para meninas e mulheres afegãs.

Ser mulher não é fácil em nenhum lugar do mundo. O Brasil, como qualquer país emergente, também enfrenta problemas. Mas, neste momento, as afegãs lutam com todas as suas forças por direitos básicos, como estudar, trabalhar e sair às ruas livremente. Tudo o que queremos é ser vistas como seres humanos."

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