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Carteira assinada aos 36 e trabalho por dignidade trans: 'Sou mulher, sim'

Aysha Cristiane de Oliveira: depois de vida na rua e prostituição, atuação em trabalho com propósito - Mariana Vieira Elek/UOL
Aysha Cristiane de Oliveira: depois de vida na rua e prostituição, atuação em trabalho com propósito Imagem: Mariana Vieira Elek/UOL

Mirela Leme

Colaboração para Universa, em São Paulo

11/03/2023 04h00

A carteira de trabalho de Aysha Cristiane de Oliveira, 37, teve o primeiro registro há dois anos —uma vitória em um país em que a expectativa de vida de uma mulher trans é de 35 anos. Aysha enfrentou a morte, morou na rua e foi prostituta antes de alcançar uma posição que, hoje, garante dignidade não só a ela, mas a outras trans e travestis na cidade de São Paulo.

Ela faz parte do recém-inaugurado Centro de Referência de Saúde Integral para População de Travestis e Transexuais Janaina Lima —a homenageada foi a primeira mulher travesti a assumir o Conselho Municipal de Atenção à Diversidade Sexual de São Paulo e morreu vítima de um infarto em setembro de 2021, aos 45 anos.

Natural de Itapeva, no interior de São Paulo, Aysha foi entregue para adoção assim que nasceu. "Não sei absolutamente nada sobre minha família de sangue", conta. E uma sequência de tragédias marcou sua vida.

O pai adotivo foi assassinado quando ela tinha quatro anos. Desde então, passou a morar com a avó paterna, a quem, reconhece, deve a vida. Aos 13, "matou" sua identidade masculina, quando começou a transição e passou a se prostituir.

"Minha avó nunca soube da minha profissão, mas era assim que eu pagava os remédios dela e ajudava nas contas. Éramos muito companheiras, ela aceitava minha transição e me chamava de Cris", lembra.

O nome Aysha foi escolhido mais recentemente e já consta em seus documentos de identidade.

Primeiro emprego depois de vida na rua e prostituição

Após a morte da avó, em meio a uma briga familiar pela casa que morava com ela, foi viver na rua. Depois, saiu do interior e se mudou para São Paulo, onde vive há sete anos, para trabalhar em uma casa de prostitução. Se apaixonou e se casou com um cliente, com quem ficou por seis anos.

Aysha Cristiane de Oliveira - Mariana Vieira Elek - Mariana Vieira Elek
O orgulho da carteira assinada veio aos 35, como funcionária da prefeitura de SP
Imagem: Mariana Vieira Elek

Após a separação, Aysha concluiu os ensinos fundamental e médio e conquistou seu primeiro emprego com carteira assinada em um centro de referência no atendimento a pacientes com DST e Aids, também na capital paulista.

Em janeiro deste ano, passou a trabalhar no centro de referência Janaina Lima, onde a comunidade trans e travesti encontra, entre outros serviços de saúde, o acompanhamento de hormonização, ou terapia hormonal, para o processo de transição.

Aysha tem uma atuação da qual se orgulha e que vai além de seu cargo como auxiliar administrativa.

"Compartilho meu conhecimento e a minha militância e não me importo em corrigir eventuais erros", afirma.

"Se alguém erra o pronome, é como uma facada no peito"

"Nós respeitamos e usamos o pronome e o nome social de pacientes. Sempre reforço isso. Quando alguém erra, a sensação é de receber uma facada no peito. Esse é um lugar que deve ser exemplo para todos os espaços em que nós estivermos", continua.

Quando olha para o seu trabalho, reconhece que o tipo de serviço que poderia ter transformado a sua juventude. Hoje, celebra que outras mulheres e homens trans e travestis recebam um cuidado que ela não recebeu.

"Nunca tive esse acolhimento. Estar aqui é um grande marco para a minha vida, para a comunidade e para a sociedade", diz.

Além desse trabalho, Aysha é conselheira municipal de políticas LGBT+ e atua voluntariamente em três frentes: distribui cestas básicas para famílias, trabalha com a sensibilização de mulheres trans que são profissionais do sexo para o uso de preservativos e está à frente de uma parceria para desenvolvimento e recolação profissional de trans e travestis.


"Uma mulher que nunca abaixou a cabeça para nada"

Outro dia, diz Aysha, no caminho para o trabalho, uma pessoa olhou para o crachá dela e disse: "Um tipo desse tem emprego, e pessoas de família não têm".

Ela cita o episódio para reforçar: "Nunca abaixei a cabeça para nada e nunca vou baixar".

"Não sou 'um tipo', sou uma mulher, sim, que já passou por muitas coisas na vida, uma pessoa trans que já levou muito murro da sociedade, que hoje tem uma vida digna, é batalhadora. Essa mulher trans chegou onde tinha que chegar. Na verdade, foi além."