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Isabela Del Monde

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Caso Jaguariúna: mandar mulher 'cuidar do copo' é culpar vítima

Franciane Andrade relatou ter sido vítima de estupro de vulnerável após ir a rodeio em Jaguariúna (SP) - Reprodução
Franciane Andrade relatou ter sido vítima de estupro de vulnerável após ir a rodeio em Jaguariúna (SP) Imagem: Reprodução

Colunista de Universa

02/12/2021 04h00

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Franciane, eu sinto muito pelo que você está passando. Não vou dizer que sei o que está sentindo porque a verdade é que não sei. Não vivi o que você nos conta, mas faço questão de iniciar esse texto reconhecendo sua humanidade, porque você não é um número, um caso ou uma manchete. Você é uma pessoa que está contando ao mundo uma das maiores dores que alguém pode experimentar. E você não tem nenhuma culpa ou responsabilidade por isso; você merece apenas receber escuta, respeito e seriedade na apuração. Conte comigo.

Ao ter a coragem de contar sua história, porém, a denunciante Franciane já começou a enfrentar o desprezo que a sociedade dispensa às vítimas de violência sexual. Muitos comentários na matéria da Universa sobre o relato de estupro de vulnerável que, segundo a vítima, ocorreu em um camarote do rodeio de Jaguariúna já deram o veredicto: a culpa é da vítima que não cuidou de seu copo.

Esse julgamento tem o mesmo sentido e significado que alegar que, por causa do uso de uma saia curta, uma mulher terá que aceitar que vão olhar de forma invasiva para o seu corpo e de que é a sua roupa a culpada pela violência. Eu acho absolutamente aterrorizante como homens podem nos intoxicar e nos drogar sem nossa autorização, nos violar e o resultado da análise popular ser "é, homens são assim, cabe às mulheres se protegerem".

Assim como eu não faço ideia do que Franciane está passando, eu não faço ideia do que é circular pelo mundo, cometer as piores violações e violências que a mente humana consegue pensar com total desengajamento moral e autorização social para isso. E ainda bem que eu não sei o que é isso porque teria nojo de ser essa pessoa, não seria capaz de conviver comigo mesma.

Não há sequer um arrepio na espinha de quem limpa a barra assim para homens violentos? Você, leitora, não tem medo de ser uma vítima e na sua vez lhe disserem que você que foi desatenta ou descuidada e que não há nada que possa ser feito?

Não vivemos em função dos homens

É estarrecedor que, em pleno século 21, ainda haja pessoas que não aceitem que mulheres são tão pessoas como homens. Que podemos errar, que podemos beber até cair, que podemos andar como quisermos, que podemos cantar e dançar, que podemos dirigir a qualquer hora do dia, que podemos ficar desatentas, que podemos andar sozinhas, que podemos fazer o que quisermos fazer e que isso não tem absolutamente nada a ver com os homens. Nós, mulheres, não vivemos em função deles, para eles ou para nos protegermos deles. Vivemos por nós mesmas, pela nossa alegria, pela nossa jornada, pela nossa história.

Para você que acredita que a responsabilidade pelo estupro de uma pessoa vulnerável é da vítima que não ficou em estado de vigília sobre seu copo, você acredita que a responsabilidade do furto de uma mochila em um restaurante é de quem a pendurou na cadeira ao invés de fazer sua refeição a segurando em seu colo? Você acredita que por ter esquecido de trancar a porta da sua casa o seu vizinho pode entrar, deitar-se na sua cama, comer a sua comida e levar alguns objetos embora? Afinal, você que deveria ter trancado a casa, não trancou porque foi trouxa, então perdeu?

Eu tenho certeza de que você não acha nada disso. Que você não acha que qualquer pessoa tenha o direito de se apropriar de suas coisas ou de entrar na sua casa apenas porque você estava vivendo a sua vida sem agir como um vigia em constante atuação.

A culpa nunca é da vítima

Ninguém, em qualquer situação, tem a obrigação de se proteger de uma violência. São as outras pessoas ao redor que têm a obrigação de não violentar. Algo completamente simples de entender quando estamos falando de objetos, de casos de furtos. Por que é tão difícil aplicar a mesma lógica quando falamos de corpos e dignidades de mulheres? Nossa sanidade, nossa liberdade, nossa saúde valem menos que um celular furtado enquanto você o usava na calçada?

Eu espero que assim que conseguirmos reprogramar nossa cultura a respeito da violência doméstica sejamos capazes, enquanto coletivo social, de destruirmos a cultura do estupro. Se uma mulher está livre, vivendo sua vida e se divertindo, a última coisa que ela deveria ter que pensar é em se proteger se um estupro. Isso não deveria sequer fazer parte do nosso imaginário.

A culpa nunca é da vítima. A culpa do estupro é de quem estupra.