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Conheça o brasileiro que provou a inversão do tempo do filme "Tenet"

Cena do filme "Tenet" - Reprodução
Cena do filme "Tenet" Imagem: Reprodução

Lucas Carvalho

De Tilt, em São Paulo

05/12/2020 04h00Atualizada em 19/01/2021 09h06

Sem tempo, irmão

  • Cientista brasileiro é coautor de estudo que provou "inversão de entropia" citada no filme
  • Experimento foi realizado em um tubo de ensaio, mas está longe de ser aplicado a objetos complexos
  • Objetivo do estudo é ajudar no desenvolvimento de computadores quânticos, e não máquinas do tempo

Em "Tenet", filme do diretor Christopher Nolan que estreou em outubro em algumas salas de cinema (reabertas com restrições) no Brasil, um agente secreto interpretado por John David Washington precisa desvendar uma conspiração internacional que envolve viagem no tempo.

O conceito apresentado no filme é diferente da maioria dos filmes que você já viu, mas é sustentado por uma hipótese científica real. Tão real que já foi testada e comprovada em escala subatômica. E por um cientista brasileiro.

Roberto Menezes Serra é doutor em física pela Ufscar (Universidade Federal de São Carlos) e pesquisador do grupo de Informação Quântica da UFABC (Universidade Federal do ABC), localizada em Santo André (SP).

Ele é coautor de um estudo publicado na revista "Nature" em 2019 com pesquisadores de Singapura, Alemanha e Reino Unido que prova ser possível reverter o sentido do tempo em um sistema microscópico, usando correlações quânticas.

No experimento do qual Serra participou, os cientistas conseguiram manipular moléculas de clorofórmio para que os átomos de hidrogênio e de carbono ficassem com temperaturas diferentes —o calor fluiu do átomo mais frio para o mais quente, sem envolver aumento de energia.

Em outras palavras, os cientistas conseguiram inverter a entropia de um sistema e observar, essencialmente, o tempo dentro daquela molécula andar para trás. "É uma aparente violação da segunda lei da termodinâmica, mas não é uma violação de verdade", diz Serra em entrevista a Tilt.

"Fizemos o experimento numa condição específica, usando correlação quântica. É momentâneo, em um sistema microscópico, durante microssegundos. Mas achamos uma nova segunda lei da termodinâmica, agora generalizada."

Para entender o experimento do qual Serra fez parte, primeiro é preciso entender o que são "entropia" e "seta do tempo", dois conceitos usados no filme "Tenet" para explicar a viagem temporal dos personagens.

Em uma cena do filme que aparece em um dos trailers, a física Laura, interpretada por Clémence Poésy, mostra ao protagonista duas balas de revólver sobre uma mesa. "Uma dessas balas é como nós, viajando para a frente no tempo. A outra vai para trás. Você sabe dizer qual é qual?"

Ela estende a mão sobre a mesa e uma das balas sobe, como se estivesse caindo para cima, ao contrário. A seguir, a personagem explica que aquela bala, como outros objetos e pessoas da história, "teve sua entropia invertida" com "radiação".

Esta inversão é a chave para a viagem no tempo do filme. Quanto mais tempo uma pessoa passa invertida, mais ela volta no tempo. Uma semana invertido permite que um dos personagens volte sete dias no tempo, por exemplo.

Segundo Rogério Toniolo, físico e professor da Escola Politécnica da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), a entropia a que o filme se refere "é um estado na termodinâmica, assim como pressão, volume, temperatura e energia".

A entropia mede o nível de "desordem" de um sistema ou da natureza e do universo. Imagine que você está colocando chocolate em pó em um copo de leite. O leite, que estava "organizado", agora começa a se misturar aos grãos de chocolate numa bagunça irreversível. Até virar um achocolatado.

À medida que o leite se mistura ao chocolate, a desordem dentro daquele copo vai aumentando. Ou seja, a entropia dentro daquele sistema vai aumentando. E a lista de exemplos é longa.

"Imagine um balão de gás hélio. Se esse balão estoura, o hélio ali dentro vai expandir e se misturar com o ar. Depois que o balão estoura, você não vai ver o gás novamente voltando àquela forma original que ele tinha dentro do balão", diz Toniolo.

Ou seja, o nível de desordem sempre aumenta e nunca volta atrás. O leite nunca vai se separar do chocolate em pó. O gás hélio nunca volta sozinho para dentro do balão estourado. Uma xícara de café que cai no chão e se quebra nunca mais vai voltar a ser uma xícara inteira.

Essa direção em que a entropia sempre anda —para frente, sempre aumentando— é o que dá à ciência a sua "seta do tempo". O aumento de entropia é igual à passagem do tempo e vice-versa. Conforme o tempo passa, mais a entropia de um sistema aumenta.

"Se eu tenho uma xícara de café quente e não tenho um relógio, como eu sei que o tempo está passando? Eu sei porque o café vai ficando mais frio, a temperatura dele se mistura ao ambiente, a entropia dele vai aumentando. A direção em que a entropia avança é o relógio do universo", explica Serra.

Para Toniolo, porém, essa desobediência do filme à segunda lei da termodinâmica não passa de "licença poética". "Em filmes com batalhas no espaço, você consegue ouvir o som de explosões, o que é impossível, já que lá não existe ar para que o som se propague", explica o professor. "É uma licença poética para criar toda a dinâmica da história."

Em outras palavras, não é possível inverter a entropia de objetos a ponto de interagirmos com balas, pessoas e carros "invertidos" no tempo. Mas o experimento do qual Serra participou mostra que é possível, em escala subatômica, inverter a entropia de um sistema isolado.

Para realizar o feito inédito, os cientistas usaram ressonância magnética nuclear para manipular, individualmente, os átomos da molécula de clorofórmio que foi cobaia no teste.

Assim, usando um cálculo chamado de "correlação quântica", que ajuda a mapear o comportamento imprevisível de partículas subatômicas, eles conseguiram observar, por apenas alguns milissegundos, o calor fluir do átomo mais frio para o mais quente.

O fenômeno contrariou as leis da termodinâmica, que dizem que o calor deve fluir do mais quente para o mais frio —como aquela xícara de café que é o relógio do universo. O calor do café se dissipa até que a bebida fique fria (ou na temperatura do ambiente).

Inverter o fluxo de calor de um sistema não é exatamente novidade —afinal, aparelhos de ar-condicionado fazem isso há décadas. A diferença é que para um aparelho desses inverter a temperatura de um ambiente, ele precisa consumir muita energia.

Essa energia é jogada para fora do ambiente. É por isso que aparelhos de ar-condicionado ficam quentes quando estão ligados e resfriando uma sala: o ato de inverter a entropia do ar no ambiente exige que o calor seja "jogado" em algum lugar.

Ali dentro daquela sala parece que a entropia do ar foi invertida, mas no universo como um todo, ela não foi. O calor só foi jogado em outro lugar.

A novidade no experimento de Serra e sua equipe foi que, pela primeira vez, cientistas conseguiram mudar o sentido do fluxo da temperatura sem gerar mais energia ou jogar o calor para outro lugar.

Porém, na física quântica não existe almoço grátis. O calor não foi jogado em outro lugar, mas o custo dessa inversão de entropia foi o uso de computadores e equipamentos de ponta para calcular a correlação quântica dentro daquele pequeno tubo de ensaio, o que demanda mais tempo e dinheiro do que ligar o ar-condicionado.

Embora Serra e sua equipe tenham provado que é possível inverter a entropia e a seta do tempo de um sistema, o resultado desse experimento foi extremamente limitado: dentro de uma molécula de clorofórmio, com equipamentos caros como ressonância magnética nuclear, e durou apenas alguns milissegundos.

Isso é bem diferente de inverter o movimento de um agente secreto de 1,75 metro de altura como o personagem de John David Washington em "Tenet", dos pés à cabeça, pela duração de uma sequência inteira de ação de 30 minutos, por exemplo.

"A gente fez isso num conjunto de átomos num tubo de ensaio. Para fazer isso com uma pessoa, precisaríamos conhecer o estado de cada átomo no seu corpo. Mesmo com todo o poder computacional que a gente tem no mundo, não conseguimos fazer isso", diz Serra.

A principal dificuldade é calcular o estado quântico de uma partícula subatômica. No caso do clorofórmio foi um pouco mais fácil porque só havia dois estados possíveis em que as partículas observadas poderiam estar. Em um corpo humano, cada partícula pode ter centenas de estados diferentes ao mesmo tempo. Nenhum computador no mundo hoje consegue calcular tantas variáveis.

Mas e se houvesse um supercomputador capaz de calcular, na velocidade da luz, o estado quântico de cada átomo no corpo de um ser humano —ou num carro, ou no projétil de uma pistola, por exemplo— e permitir a inversão da entropia de cada um como Serra fez no seu experimento com clorofórmio?

Hoje esse tipo de supercomputador só existe em sonhos: um computador quântico, capaz de processar informações usando transistores menores do que um átomo e, assim, ocupar menos espaço para realizar tarefas mais complicadas.

Os computadores de hoje fazem cálculos em bits que carregam, grosso modo, apenas uma de duas possíveis informações: verdadeiro ou falso, zero ou um. Um computador quântico usa qubits, que podem carregar essas duas possíveis informações, só que ao mesmo tempo.

Por isso eles conseguem processar um volume maior de tarefas em menos tempo e ocupando menos espaço. Mas para montar uma máquina dessas, é preciso conhecer o mundo da física quântica profundamente. E os cientistas estão apenas começando a explorar esse universo.

Os computadores quânticos que já existem em forma de protótipos hoje conseguem processar, no máximo, algumas dezenas de qubits. Mas os átomos do corpo humano (ou de qualquer objeto maior que um elétron) têm muito mais informações do que só "verdadeiro ou falso" ao mesmo tempo.

Ou seja, seriam necessários milhares de qubits para observar e compreender o estado quântico de cada átomo no corpo de uma pessoa ou em qualquer objeto macroscópico —ou até mesoscópico, segundo Serra.

Computador quântico da Microsoft - Divulgação/Microsoft - Divulgação/Microsoft
Computador quântico da Microsoft
Imagem: Divulgação/Microsoft

O experimento do brasileiro, embora tenha invertido o relógio daquela molécula de clorofórmio por uma fração de segundos, não tem como objetivo criar uma máquina do tempo, e sim ajudar a desenvolver os computadores quânticos do futuro.

Serra explica que encontrar uma maneira de esfriar partículas subatômicas ajudaria a segurar a temperatura de um processador quântico. Como os computadores de hoje em dia, ele ficaria muito quente no uso prolongado. A diferença é que uma simples ventoinha não seria suficiente para esfriá-lo.

"As aplicações desse experimento seriam para dentro do processador de um computador quântico, para esfriar um pedacinho dele", diz Serra. "Hoje está fora de questão aplicar esse tipo de ideia a um sistema maior. Nem a uma bolinha de gude."

Resumindo: dá para inverter a entropia de um objeto e, para os nossos olhos, fazê-lo "andar para trás" no tempo? Com um sistema microscópico deu. Mas aplicar isso ao mundo real, por enquanto, só com a típica licença poética da ficção científica.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Uma versão anterior deste texto afirmava incorretamente, no 5º e no 22º parágrafo, que, no experimento do qual Serra participou, o calor fluiu do átomo mais quente para o mais frio. Na verdade, o calor fluiu do mais frio para o mais quente, efetivamente invertendo a ordem natural da entropia. A informação já foi corrigida.