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OPINIÃO

O que a compra de 900 picolés nos diz sobre segurança digital infantil

IStock
Imagem: IStock

Maíra Bosi*

26/05/2021 04h00

Recentemente, um menino norte-americano de 4 anos de idade conseguiu comprar sozinho mais de 900 picolés do Bob Esponja no site de compras on-line Amazon, gerando uma dívida equivalente a quase R$ 14 mil para sua mãe. Apesar de ter repercutido na imprensa e nas redes sociais de forma bem-humorada, esse caso revela algo preocupante.

Quando o que impede uma criança de comprar centenas de picolés e lanches de fast food na internet é apenas um clique, precisamos parar e conversar seriamente sobre que ambiente digital é esse onde estamos permitindo que elas naveguem.

E que fique claro: quando digo "estamos" não estou falando de você nem de mim, muito menos de mães e pais. Afinal, seria muito simples determinar que bastaria os adultos responsáveis vigiarem por onde as crianças navegam ou reduzirem o tempo de uso de telas. Só que não bastaria — além de isso não ser sequer factível.

Estamos vivendo um momento sem precedentes na História, em que o isolamento físico imposto pela pandemia de covid-19 levou toda a sociedade a fazer um uso muito maior da internet no dia a dia. Não seria nada premonitório dizer que, seja qual for o futuro que nos está reservado, a digitalização não vai dar passos para trás.

Por isso, precisamos garantir que os espaços digitais sejam seguros para crianças — que, mesmo antes da pandemia, já representavam um terço dos usuários de internet no mundo (Unicef, 2017).

Isso significa não apenas impedir que elas consigam fazer compras on-line com apenas um clique em aplicativos ou sites — que, por sua vez, não exigem qualquer tipo de verificação extra do usuário na finalização da compra — , mas fazer com que elas não sejam exploradas comercialmente de nenhuma forma durante o uso da internet.

No recente caso dos 900 picolés comprados por uma criança, a família explicou que a Amazon não aceitou a devolução dos produtos e que a solução encontrada, portanto, foi iniciar um crowdfunding para reunir recursos para o pagamento devido. A história logo ganhou repercussão internacional e não faltaram pessoas dispostas a contribuir para aliviar o sufoco da mãe.

Por fim, a própria Amazon também contatou a família oferecendo uma doação. De vítimas anônimas, a família alcançou o posto de celebridades do momento devido à inusitada história. Bom, nem tão inusitada assim.

. - Reprodução/Instagram @raissawandrade - Reprodução/Instagram @raissawandrade
Imagem: Reprodução/Instagram @raissawandrade

Aqui no Brasil, em novembro de 2020, ocorreu algo bem semelhante. Um menino de 3 anos de idade comprou o equivalente a R$ 400 em lanches do McDonald's via aplicativo de entregas iFood. Nesse caso, a mãe precisou lidar não apenas com a dívida inesperada, mas com a frustração de seu filho, que ficou triste porque, apesar da quantidade absurda de lanches comprados, não conseguiu o "minion dourado" entre os brinquedos dos combos de McLanche Feliz.

Com a repercussão do caso na imprensa, o iFood confirmou que a compra foi realizada, mas não disse como os pais poderiam evitar esse tipo de situação.

Os dois casos guardam semelhança entre si, para além da situação ocorrida, de terem acontecido durante a pandemia e do inaceitável fato de os aplicativos de compra deixarem as informações de cartão de crédito do usuário salvas sem exigir qualquer verificação adicional no momento de finalizar o pedido.

Mais do que isso, em ambos os casos, as crianças desejaram adquirir produtos que chamam atenção por suas respectivas estratégias de publicidade infantil — ou seja, comunicação comercial dirigida diretamente a crianças abaixo de 12 anos de idade.

De um lado, temos um picolé com um personagem querido das crianças, o Bob Esponja, não apenas na embalagem quanto no próprio formato do doce. Estima-se que atrelar personagens licenciados a um produto pode aumentar até 30% suas vendas.

De outro, o combo McLanche Feliz, já tradicional por associar alimentação ao entretenimento, estimulando o desejo das crianças a colecionarem todos os "brindes" ofertados. Não à toa, o McDonald's é o maior distribuidor de brinquedos do mundo.

Noah, de 4 anos, comprou muitos picolés do personagem Bob Esponja - Reprodução/GoFundMe - Reprodução/GoFundMe
Noah, de 4 anos, comprou muitos picolés do personagem Bob Esponja
Imagem: Reprodução/GoFundMe

Proteção das crianças como prioridade absoluta

Até 12 anos de idade, as crianças vivenciam uma fase de intenso e fundamental desenvolvimento físico, cognitivo, psicossocial. São, assim, mais vulneráveis aos estímulos da publicidade — cujo caráter persuasivo sequer conseguem compreender e reconhecer.

Por isso, a legislação brasileira já determina essa prática como abusiva e, portanto, ilegal.

Entre as inúmeras consequências nefastas da publicidade infantil, pode-se destacar o estresse familiar causado pelos pedidos insistentes das crianças e o superendividamento das famílias para atender aos desejos de consumo construídos. Ambos presentes nos dois casos aqui apresentados — com o agravante de que as mães em questão não puderam sequer optar pela compra dos produtos.

Direcionar qualquer tipo de comunicação mercadológica a crianças é, além de tudo, uma prática injusta e antiética por passar por cima da autoridade de mães, pais e responsáveis e, ao mesmo tempo, deixá-los sozinhos para lidar com as consequências disso.

No ambiente digital, essa situação se agrava uma vez que os modelos de negócios de plataformas, sites e aplicativos são, em grande parte, baseados em dados e orientados por interesses comerciais. Nesse cenário, crianças ficam ainda mais vulneráveis à exploração comercial e mães e pais podem se sentir ainda mais desamparados sobre como proteger seus filhos.

Mesmo porque esse papel não deveria caber somente a eles, mas, sim, aos Estados, empresas e toda a sociedade.

Não à toa, o Comitê dos Direitos da Criança da ONU acaba de lançar um novo comentário geral sobre os direitos das crianças em relação ao ambiente digital, determinando que empresas cumpram seu papel de proteger e garantir os direitos da criança também na internet.

Além disso, o documento é categórico em recomendar que os Estados proíbam por lei a prática de publicidade comportamental com base em dados de crianças e adolescentes.

Mais do que nunca, crianças têm direito a estar seguras na internet. Até mesmo os sites, aplicativos e serviços que não foram desenvolvidos prioritariamente para o uso infantil, mas que podem ser acessados por esse público, precisam garantir que seu uso seja seguro para esse público. A isso chamamos "direitos da criança por design".

É necessário que as empresas ajudem mães, pais e famílias na já tão desafiadora missão de orientar seus filhos e filhas no ambiente digital. Garantir que crianças de 3 ou 4 anos não consigam comprar, tão facilmente, uma quantidade expressiva de produtos sem o conhecimento de seus responsáveis é só a ponta do iceberg.

*Maíra Bosi é comunicadora do programa Criança e Consumo do Instituto Alana