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Opinião: Audiência online na pandemia melhora isenção do juiz e deve ficar

kupritz/Getty Images/iStockphoto
Imagem: kupritz/Getty Images/iStockphoto

Erik Navarro Wolkart e Álvaro Machado Dias*

Especial para Tilt

21/11/2020 04h00

Se existe um legado dos anos 1980 tão importante quanto a noção de que circular pelas ruas conectado a uma caixinha é cool, é o de que o ser humano possui múltiplas inteligências ou, mais especificamente, uma forma emocional, e empática, de inteligência, conforme descreveu Howard Gardner.

Apesar de a primeira ideia ser mais vistosa em seu individualismo indisfarçável, é a segunda que dá o tom quando o assunto é aquilo que esperamos dos outros —e mesmo das instituições, que através deles se representam. Seja na administração, na medicina ou no direito, a máxima vigente é que "soft skills são tão importantes quanto hard skills".

É claro que, em todas essas áreas, quem está do outro lado do balcão sabe que não é bem assim, pois o domínio metodológico é a base para toda atuação de qualidade. Isso, contudo, não nos impede de notar que, para ir além do livro, da técnica e do algoritmo, é fundamental uma bela dose de empatia.

A empatia é essa capacidade de pedir licença à experiência imanente de si mesmo e se colocar genuinamente no lugar do outro. Ela combina dois dos mais sofisticados processos cerebrais que possuímos: mapeamento de intenções alheias e virtualização de sentimentos.

A pandemia de covid-19 impôs lockdowns da empatia, por força da necessidade. Um de seus criadouros mais importantes, a escola, teve que ser esvaziado. Muita gente achou que a empatia iria se adaptar igualmente bem ao ensino remoto, mas não é bem o caso. Hoje se sabe que ela é como um ser vivo, que precisa estar entre outros seres vivos para crescer e amadurecer.

O caso do trabalho remoto tem alguma semelhança, mas nem tanta. Primeiro porque o adulto mentalmente saudável tem ao menos uma parte da lógica da empatia internalizada. Depois, porque este tipo de rotina produtiva não impede quem decide as coisas por si mesmo de ter experiências onde a empatia se confunda com o ar —afinal, não é porque o trabalho está mais virtual, que a sala de casa também precisa estar; basta ter filhos para saber que o problema é justamente o contrário.

Finalmente, temos as lojas, cartórios e outros núcleos de serviços de uso intervalado. Muita gente que dava o ar da graça nesses lugares sumiu com a sua empatia, em função da possibilidade de usar algum canal digital, ou da impossibilidade de se fazer presente.

Não se trata de negar a existência de situações nas quais a ausência de alguém do outro lado do balcão traz problemas, mas sim de constatar que o consumidor encontrou na digitalização acelerada uma das poucas zonas de conforto desse período tão duro e turbulento.

Assim, temos três modelos de relacionamento sendo impactados de maneiras distintas pela internet: o da escola e outros espaços intimamente associados à construção da empatia, onde a digitalização deixa bastante a desejar; o do trabalho, onde o compartilhamento físico do oxigênio é importante, mas não precisa servir de mantra; e o das interações estritamente instrumentais, onde a proliferação de alternativas à interação presencial vem sendo bem recebida em todas as partes, com exceção da economia, dado seu impacto no emprego (ainda que haja aqui possíveis ganhos de longo prazo).

É claro que há muitas nuances a serem discutidas nesse modelo; por exemplo, muitas lojas têm como proposta de valor servirem de espaço de subjetivação e não de mera realização funcional. Reservemos para outra ocasião. Agora, o que importa é notar que existe uma gradação no envolvimento esperado entre as partes (escola, trabalho, Leroy Merlin), que serve de pano de fundo para uma primeira avaliação do modelo de relacionamento subsumido num tribunal.

Assim é que convidamos você a pensar: quando analisadas do ponto de vista das interações subjetivas que devem ditar a sua dinâmica, será que as audiências estão alinhadas a alguns dos modelos acima ou precisam de uma abordagem alternativa?

Ainda que o judiciário permeie cada aspecto da vida em sociedade, fato é que a maioria das pessoas só lembra dele quando surge a tensa —e, muitas vezes, enfadonha— necessidade de "comparecer à justiça". Seu papel no dia a dia é instrumental e, na maioria dos casos, não recorrente.

Neste sentido, as audiências, que são esses encontros envolvendo o juiz, advogados e as partes, estão mais para o terceiro tipo do que para os dois primeiros. Elas exigem que o juiz tenha uma estrutura empática internalizada, mas não preconizam a geração de laços pessoais, nesses espaços em que a empatia se confunde com o oxigênio compartilhado, isto é, na sala da audiência, corredores ou no elevador.

Mais ainda, o consenso na área é que isto não ocorra, dado o enorme risco à isenção processual, já que a busca da imparcialidade é a primeira obrigação de um juiz. Assim, o modelo de relacionamento que a justiça preconiza é de um quarto tipo, diferenciando-se dos outros serviços não recorrentes pela importância do distanciamento afetivo em relação às partes.

Advogado símbolo da Justiça notebook laptop - Leandro Aguilar/ Pixabay - Leandro Aguilar/ Pixabay
Imagem: Leandro Aguilar/ Pixabay

O juiz deve estar disposto a se colocar no lugar do outro para tentar entendê-lo melhor, mas não deve expor esse procedimento cognitivo a manobras feitas pelas partes para conseguir a sua simpatia (que é a personalização da empatia), pelo simples fato de que isso pode criar um indesejável desequilíbrio decisório.

Audiências online são variações das presenciais, caracterizadas pela redução no número de dimensões disponíveis para o estabelecimento de conexões empáticas contingentes. Em tempos de pandemia, principalmente frente à cada vez mais evidente "segunda onda", o Conselho Nacional de Justiça vem deixando a cargo dos juízes a imposição justificada do modelo online. Mas o mesmo conselho já resolveu que, em condições normais, a escolha da modalidade online caberá às partes. É a chamada "Justiça 100% digital".

De toda forma, as audiências online são, e continuarão sendo, uma realidade. Por meio delas, há algo que se perde e algo que se ganha.

Evidentemente, há problemas. Da estabilidade do sinal, às dificuldades de quem não é muito íntimo da tecnologia, elas compartilham os transtornos presentes nos demais serviços que tiveram que evoluir como se o mundo tivesse amanhecido uma ficção distópica em fast forward.

Uma crítica comum ao uso de videoconferência e recursos análogos nas audiências é a redução de fluidez da comunicação entre os advogados e o juiz; outra é a de que afetam a relação entre esse e o réu. Ambas têm sua dose de verdade.

Em relação ao primeiro ponto, a questão que fica é se o interesse da sociedade como um todo está mais alinhado a este modelo de fluidez ou ao modelo de transparência na comunicação que as audiências online reforçam; eventualmente, quem tem condições de pagar advogados melhores ou mais capacitados para a geração de relações empáticas dirá "opção 1", enquanto quem não tem dirá "2". É ainda possível, como diria o professor de direito de Harvard Bruce Hay, que as partes fizessem uma opção "ex ante", mas se arrependessem de acordo com o resultado do processo. Afinal, para a maioria dos seres humanos, "justo é aquilo que me favorece". Ao menos é o que tem nos ensinado a psicologia e a economia comportamental.

O mesmo princípio se aplica ao segundo ponto, com uma diferença: quando opcional, a audiência online tem menos a ver com subtração de empatia, do que da antipatia. Parece estranho? Então nos diga: você conhece alguém com cara de poucos amigos que, no fundo, seria incapaz de fazer mal a uma borboleta? Perceba que o exemplo foi tirado da cristaleira dos estereótipos falsos (quase um pleonasmo) e que uma pilha grande de estudos mostra que juízes nem sempre conseguem mantê-los atrás do vidro, por mais que tentem e acreditem no contrário.

Ao subtrair várias das dimensões sensoriais, as audiências online diminuem os riscos de a empatia do magistrado degenerar-se em simpatia ou antipatia por uma das partes comprometendo sua isenção. Ao menos é isso que ficou comprovado em interessante estudo inglês sobre os julgamentos do "tribunal de infrações de trânsito". Uma vez virtualizado o processo, a distância dos valores de multa impostos a motoristas jovens e não tão jovens para as mesmas infrações diminuiu. A hipótese é a de que o distanciamento físico reduziu o preconceito forjado no estereótipo de que jovens motoristas são irresponsáveis.

Por essas razões, e também por ajudar no combate à morosidade e na diminuição de custos para as partes e para o Estado, entendemos que a justiça digital é benéfica para a população. Surpreendente é notar que, ao menos no Brasil, foi preciso uma pandemia para que a gente se convencesse disso.

* Erik Navarro Wolkart é juiz federal, doutor em Direito pela UERJ em colaboração com a Harvard Law School e coordenador acadêmico do Instituto New Law

Álvaro Machado Dias é colunista do Tilt, neurocientista cognitivo, professor livre-docente da Universidade Federal de São Paulo, diretor do Centro de Estudos Avançados em Tomadas de Decisão, editor associado da revista científica "Frontiers in Neuroscience", membro da Behavioral & Brain Sciences (Cambridge) e do MIT Tech Review Global Panel. Seus interesses intelectuais envolvem tomada de decisões de um ponto de vista cerebral, efeitos das novas tecnologias na compreensão do mundo, inteligência artificial, blockchain e o futuro da medicina. Contato: alvaromd@wemind.com.