Helio de la Peña: 'Vivo num condomínio onde sou o único proprietário negro'

Helio de la Peña, 64, levou para o espetáculo de stand-up "Preto de Neve" uma constatação que o acompanha desde a infância: ser o único negro em muitos dos ambientes que frequenta. Foi assim no colégio, na universidade e na televisão.

É uma situação que eu vivo até hoje, porque vivo num condomínio aqui no Leblon, no Rio de Janeiro, onde eu sou o único proprietário negro. Quando eu vou num restaurante, eu olho em volta e, geralmente, sou o único negro
Helio de la Peña, ator e roteirista

O artista, que se apresenta hoje em São Paulo e amanhã em Campinas, brinca no próprio show dizendo que foi uma espécie de "Mogli, o menino preto" na infância. Ele conta que passou a frequentar um "ambiente mais branco e privilegiado" quando deixou a escola pública, na Vila da Penha, no Rio de Janeiro, para estudar no colégio São Bento.

Quando eu fui colocado no São Bento, eu fui me distanciando dos meus colegas da Vila da Penha. A carga horária do colégio era muito pesada e, além disso, tinha uma distância longa de transporte. Com isso, eu ficava a maior parte do tempo longe do bairro. E aí, com esse distanciamento, eu comecei a criar laços com o pessoal do colégio

Helio de la Peña durante o standup Coisa de Preto em 2018, em São Paulo
Helio de la Peña durante o standup Coisa de Preto em 2018, em São Paulo Imagem: Karime Xavier/Folhapress

Anos depois, quando cursava engenharia de produção na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), conheceu os amigos Beto Silva e Marcelo Madureira. À época, o trio criou o Casseta Popular — jornal que fazia graça com o movimento estudantil. Bussunda e Cláudio Manoel se juntaram ao trio logo em seguida.

"Quando eu conheci o pessoal, que mais tarde a gente veio fazer a Casseta Popular e, depois, o Casseta & Planeta, passei a circular muito na casa do Bussunda, do Beto Silva e do Madureira. Enfim, eram pessoas que, de alguma maneira, me acolhiam, por que eu morava longe"

Hubert e Reinaldo, do Planeta Diário, se davam tão bem com o já então quinteto que decidiram se unir em uma só causa. Tempos depois, eles foram convidados para fazer um show juntos no Rio de Janeiro, e assim surgiu o Casseta & Planeta.

Casseta & Planeta, Urgente!

O humorista Hubert Aranha (à dir.) entrevista a personagem Magrina da Silva (Hélio de la Peña), sátira de Marina Silva
O humorista Hubert Aranha (à dir.) entrevista a personagem Magrina da Silva (Hélio de la Peña), sátira de Marina Silva Imagem: Divulgação
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Helio de la Peña foi, ao longo de quase 20 anos, o único integrante negro no programa de humor produzido pela Globo. Ele, que é um dos criadores da atração, conciliava as funções de redator e ator e, por isso, tinha influência direta no texto que era levado ao ar. "Agora, a minha forma de ver as coisas, o meu humor, é provavelmente diferente do que um garoto novo, preto, hoje que começa. Eu tinha uma tolerância para determinadas piadas que hoje em dia talvez o cara diga: 'Não. Acho isso demais'"

Diferentemente de outros programas de humor da época, o Casseta & Planeta era construído predominantemente de elementos da atualidade. "Essa ideia de ser um humor contemporâneo, antenado com o que está passando naquele instante, foi uma grande novidade. Os programas de humor eram gravados, inclusive, em série."

E é justamente por isso que o ator defende que o programa — e o humor produzido por ele — seja analisado com os olhos da época em que foi produzido. "Não faz sentido você, hoje, olhar para trás, 20 anos atrás, e cobrar que a gente pensasse em atender os desejos do público de 2024. A gente tinha que atender os desejos do público que estava assistindo televisão naquele momento."

Da esquerda para a direita Helio de La Pena, Beto Silva, Claudio Manoel e Hubert
Da esquerda para a direita Helio de La Pena, Beto Silva, Claudio Manoel e Hubert Imagem: Reprodução/Instagram/@Lapena

O artista atribuí o desgaste da atração a uma série de mudanças internas adotadas pela Globo, que teria passado a vetar piadas com anunciantes e citações aos canais concorrentes. O ambiente de "pouca liberdade" passou a enfrentar a concorrência de novas atrações, como CQC (Band) e Pânico (Rede TV!), que bebiam de uma outra fonte de humor: "o custe o que custar".

A gente não podia fazer paródia de comercial, porque alegava-se que estávamos depreciando o produto do anunciante. Não podíamos fazer referência a quadros de outras emissoras, porque estaríamos botando azeitona na empada do adversário. Uma série de questões que foram enfraquecendo. Então, dava aquela impressão de que o Casseta encaretou. Acho que isso deu uma certa engessada no programa

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Infância

A gente morava na Vila da Penha, uma família humilde, mas não chegávamos a passar necessidade. Em um certo sentido, até tinha uma condição privilegiada em relação ao resto da minha família. Minha mãe era professora e ela era muito rigorosa, principalmente comigo. Então, além do dever de casa do colégio, tinha que fazer um dever extra que ela inventava

Humor como profissão

Louise Cardoso, Regina Casé e Ney Latorraca, parte do elenco do humorístico 'TV Pirata'
Louise Cardoso, Regina Casé e Ney Latorraca, parte do elenco do humorístico 'TV Pirata' Imagem: Divulgação

Foi no início de 1988, quando nós fomos contratados para ser redatores do TV Pirata. Na verdade, nós fomos contratados para ser redatores de um programa novo que estava por vir. Esse programa veio a ser o TV Pirata e naquele instante, quando eu assinei o meu contrato de redator, eu imediatamente apresentei minha demissão na empresa de engenharia. Muito feliz, aliás

Convívio com os colegas do Casseta & Planeta

Marcelo Madureira, Cláudio Manoel, Hubert, Bussunda, Beto Silva e Helio de La Peña
Marcelo Madureira, Cláudio Manoel, Hubert, Bussunda, Beto Silva e Helio de La Peña Imagem: Marizilda Cruppe/Agência O Globo
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O convívio era ótimo, o convívio era bem harmônico. Sobretudo no bastidor da gravação, era bem tranquilo. A 'porrada' comia mesmo era na hora da redação, criando os textos. Enfim, havia um quebra-pau, mas um quebra-pau bem saudável.

Acabava tudo, a gente saía para almoçar, todo mundo junto, sem problema nenhum. Entende? Inclusive, para que isso se mantivesse assim, essa harmonia fosse preservada, algumas decisões foram muito importantes. Uma delas é que a gente não escalava, a gente não se escalava para papéis no programa. Isso era uma atribuição do diretor do programa, que era o Zé Lavigne, no caso

É mais difícil fazer humor hoje em dia?

Olha, essa é uma pergunta que as pessoas fazem muito. Como se fosse fácil. Como se sempre tivesse sido fácil e agora ficou difícil. Eu acho que cada época tem as suas dificuldades inerentes, suas dificuldades próprias

Paternidade

Helio de La Peña com os três filhos: João, Joaquim e Antônio
Helio de La Peña com os três filhos: João, Joaquim e Antônio Imagem: Reprodução/Instagram
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A paternidade é uma coisa muito importante na minha vida. Eu tenho três filhos. Eu tenho um filho de 31 anos, que vai fazer 32 esse ano. Eu tenho outro de 22 e outro de 20. E todos estão bem. Eu aprendi muita coisa com cada um deles. É curioso que, cara, não importa. Cada um tem a sua história, tem a sua vida diferente. Você tem que aprender como lidar com um, como lidar com o outro.

Racismo

Eu acho que passei a refletir mais sobre isso quando essa discussão veio mais à tona na sociedade, mais recentemente, e foi se aprofundando, sobretudo depois do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam ou Vidas Negras Contam) e tudo, que comecei a refletir, a ter contato com as pessoas, a conversar mais com outros pretos, sejam eles militantes ou artistas. Até para ver até que ponto eu concordo, até que ponto eu discordo, o que a minha vivência diz, o que a minha vivência escamoteia nessa questão, em que circunstância.

Mesmo sendo uma pessoa preta, eu me sinto uma pessoa privilegiada, distante de certas ameaças, e lembrar as ameaças que aconteceram no passado, as sutilezas do racismo que eu vivi e que de repente passaram despercebidas ou que eu não quis guardar. Enfim, a questão da autoestima... eu tive que trabalhar muito sozinho para desenvolver a minha autoestima. Então, são questões que eu venho pensando e venho jogando para refletir a minha trajetória nessa história toda.

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