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'The Good Doctor', afinal, é uma boa representação do autismo?

Shaun e Lea no 1º episódio da 5ª temporada de "The Good Doctor": casamento à vista - Jeff Weddell/ABC/Sony Pictures Television
Shaun e Lea no 1º episódio da 5ª temporada de 'The Good Doctor': casamento à vista Imagem: Jeff Weddell/ABC/Sony Pictures Television

De Splash, em São Paulo

03/07/2023 04h00

Quando chegou à TV brasileira, "The Good Doctor" foi um sucesso instantâneo. O motivo, a grosso modo, é simples: a mente criativa de David Shore, criador também de "House", encontrou o equilíbrio perfeito entre repetir uma fórmula já estabelecida e acrescentar novos detalhes essenciais para cativar a audiência.

Não se trata necessariamente da neurodivergência de Shaun Murphy (Freddie Highmore), ou seu alto intelecto — neste caso, relacionado ao autismo. É claro que o flerte da atração com o transtorno é um fator decisivo para que a série faça parte de conversas relevantes neste sentido, mas a conexão com o público está atrelada ao formato — ao menos é o que acredita o protagonista.

"Durante o tempo em que The Good Doctor está no ar, a televisão se transformou significativamente", diz o ator em conversa com Splash para divulgar o lançamento da quinta temporada no Sony Channel, que acontece hoje. "Olhando para onde a TV estava há seis anos e onde está agora, o cenário é diferente. Uma das coisas que eu amo em The Good Doctor é que se trata de uma série que deveria ser apreciada ao longo de todo o ano", declara.

"O sucesso de uma série, de certas formas, é ver que há valor que permanece por muito mais tempo e múltiplas temporadas. Com esses personagens, fazemos eles serem parte da vida das pessoas semanalmente, ao invés de apenas correr com uma temporada. Estamos em um momento interessante, mas eu sou grato por ter tanto tempo para mostrar a evolução do Shaun, porque acho que isso é necessário."

O posicionamento abre uma discussão pertinente em tempos de dramas de prestígio e séries do streaming. Embora programas como "Succession" (HBO) e "Dave" (no Star+) sejas as figurinhas presentes em listas de melhores séries do ano até agora, segundo a crítica, são as comédias e os procedurais da TV aberta, de "Young Sheldon" a "NCIS", que realmente dominam a TV americana.

No caso de "The Good Doctor", há de se considerar que, embora dramas médicos já tenham sido os mandachuva da televisão aberta, hoje pouco se fala de algum que não seja "Grey's Anatomy" — que contraria as estatísticas e vai à contramão de tantas séries policiais no auge de suas 19 temporadas. É claro que há outros, como "Chicago Med" e "9-1-1", mas o diferencial de "The Good Doctor" é abordar um tema que, geralmente, fica restrito a séries mais nichadas.

"Everything's Gonna be Okay" (HBO Max), "Atypical" (Netflix), "Amor no Espectro" (Netflix) e "Heartbreak High" (Netflix) são exemplos de séries recentes com personagens autistas, e discutem a inclusão, a amizade e a construção de laços afetivos na trama. Todas elas são transmitidas no streaming, que enquanto meio em ascensão, não tem o mesmo alcance que a televisão tradicional.

Ainda assim, uma das grandes dificuldades a respeito da representação de pessoas no espectro autista é a fuga dos estereótipos. Um estudo de 2015 relata que representações incorretas de experiências de estudantes com autismo é um dos motivos por que muitos preferem não revelar o diagnóstico para colegas.

Segundo um estudo de Sandra C. Jones, Chloe S. Gordon e Simone Mizzi, da Universidade Católica Australiana, estigmas em representações de personagens autistas, seja em literatura, no cinema ou na televisão, são extremamente nocivos. Alguns dos estereótipos mais presentes envolvem genialidade intelectual (vistaem "The Good Doctor"), agressividade e descontrole.

Sobre o cinema e a televisão, a pesquisa aponta que houve um aumento da diversidade étnica dos personagens com autismo nos últimos anos. Desde pessoas com famílias não-caucasianas a membros da comunidade LGBTQIAP+, também houve evidência de um movimento de distanciamento de convenções de gênero muito recorrentes, como a da Síndrome de Savant que acomete Shaun.

Em relação a "The Good Doctor", as opiniões são vastas. Um estudo publicado em 2019 por Stephanie C Stern e Jennifer L Barnes, do departamento de psicologia da Universidade de Oklahoma, detectou que assistir a um episódio de "The Good Doctor" resultou em um conhecimento mais correto e sentimentos mais positivos sobre Transtorno do Espectro Autista do que assistir a uma palesestra sobre o tema.

Por outro lado, há representantes de organizações e outras autoridades que consideram a representação da série estereotipada. "The Good Doctor reforça falsos estereótipos de que pessoas com autismo não conseguem formar relações significativas, entender limites ou tratar os outros com respeito", disse ao jornal The Washington Post Lydia Brown, conselheira da comunidade sem fins lucrativos de mulheres e pessoas não-binárias com autismo. Para ela, Murphy é "um recorte do que as pessoas acreditam que uma pessoa autista deve ser".

"Todos nós amamos The Good Doctor, mas acho que ainda não chegamos lá", confessa Highmore a Splash, sobre a evolução da representação de pessoas neurodivergentes em Hollywood.

"Nós esperamos que a série seja importante, mas uma única série não vai mudar tudo. Tenho orgulho do trabalho que nós fizemos, mas também acho que há mais a ser feito. E há mais que nós poderemos fazer ao continuar contando essas histórias. Eu torço para que mais séries continuem representando diversos pontos de vista, pessoas e opiniões diversas."