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OPINIÃO

'Negro em movimento', Milton Gonçalves mostrou que longevidade é militância

João Vieira

Colaboração para Splash, de São Paulo

30/05/2022 16h50

A escassez da presença negra nos espaços de poder sempre foi motivo de inquietude para Milton Gonçalves, morto aos 88 anos nesta segunda-feira, após dois anos convivendo com sequelas de um AVC. Muito mais que outro ator negro com muito menos papéis capazes de comportar sua grandeza do que merecia, Milton foi o farol que orientou os caminhos de toda uma geração de artistas de pele preta que buscaram usar da arte uma arma no combate à desigualdade racial.

Referência essa que transcende a arte e se manifesta até no momento de sua morte.

Milton faleceu em sua casa, segundo familiares, na hora do almoço. Foi-se longe dos corpos pretos estirados pelos morros na cidade do Rio de Janeiro, onde vivia, e Brasil afora, jogando a expectativa de vida dessa comunidade para um andar muito mais abaixo dos seus 88 anos.

Longevidade também é militância. Afinal, envelhecer com dignidade é um dos maiores desafios a serem superados por uma pessoa negra no Brasil. E Milton o fez não só em paz, mas diante de todo o país no cinema e na televisão.

Foi através da TV que o artista permaneceu se comunicando com a população até o ano passado, aos 87 anos, quando esteve no elenco de 'Filhas de Eva', série lançada exclusivamente no Globoplay.

Foi lá também que deu vida a Henrique Alves de Mesquita, maestro negro, abolicionista e uma das mais influentes personalidades do Brasil imperial, durante a minissérie Chiquinha Gonzaga, em 1999, quando já tinha 64 anos.

Milton envelheceu forte, vibrante, bem-humorado, altivo e ativo. Envelheceu admirado pelos olhos de uma comunidade carente de referências de cabelos brancos vivas e disponíveis para orientação e aprendizado.

Trouxe em seus personagens a bagagem de quem enfrentou os mais sangrentos períodos do século passado na luta, ao lado dos movimentos negros brasileiros. Jamais baixou a cabeça quando via sua raça ser utilizada contra seus avanços. Como quando processou o ator Paulo Betti por racismo em 2019, após comentários controversos do colega de profissão na disputa pela presidência do Sated (Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculo de Diversões do Estado do Rio de Janeiro).

Da militância organizada, Milton Gonçalves jamais largou a mão. Ainda que, segundo ele mesmo, não fosse um negro do movimento, mas um negro em movimento.

Milton viveu, envelheceu e, já que não tem outro jeito, morreu.

Talvez tenha ido insatisfeito por não ter visto sua nação sequer se aproximar da realizar o sonho de eleger um presidente negro, algo que só conquistou no cinema, quando ele mesmo interpretou o Presidente Dantas em 'Segurança Nacional' (2010). Ainda que o Brasil tenha tido Nilo Peçanha, negro e presidente do país entre fevereiro de 1909 e novembro de 1910, após falecimento de Afonso Pena, Milton, porém, só viria a nascer em 1933.

Mas, muito provavelmente, se foi com aquele que talvez seja o sentimento mais raro e mais desejado por aqueles que, como ele, nascem com a pele escura: o de satisfação com sua própria vida.