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ChatGPT para 'ler' livros? Vamos com calma, leitura não é competição

Pintura de Osman Hamdi Bey - Reprodução
Pintura de Osman Hamdi Bey Imagem: Reprodução

Rodrigo Casarin

Colunista do UOL

10/07/2023 04h00

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Às vezes certas bobagens que encontro pela internet ficam na minha cabeça durante muito mais tempo do que deveriam.

A coisa veio do TikTok. Nela, uma garota dá dicas de como ler livros em um dia usando o ChatGPT. A estratégia é simples: basta descolar um PDF, e-book ou similar da obra, jogá-lo na plataforma e mandar a inteligência artificial trabalhar. Dá para pedir um resumo simples, um resumo por capítulo, a exposição de ideias por tópicos, algo assim.

Genial, não? Não.

Deixo para lá o eventual uso da ferramenta para fins técnicos específicos. Penso na leitura literária, uma das opções alardeadas pela moça. Por que alguém que tem interesse num romance, por exemplo, trocaria a sua leitura por uma dúzia de parágrafos que não têm nada a ver com o que o autor fez, apenas condensam a história?

Bem, as redes sociais têm muito a ver com isso. Não é incomum trombar por aí com gente que gosta de bradar ter lido trocentos livros num mês, uma pilha numa semana. É o volume ostentado como troféu. Outros olham e pensam: pô, preciso ler tudo isso também. Bora bater meta: 20 livros por mês, 240 por ano. E tanto faz o que está lendo e a forma como se lê.

É besteira das grandes, cilada. Ler rápido, ler muito, é uma coisa, ler bem é outra. Leitura não é competição. Cada leitor tem o seu próprio ritmo, os seus momentos do dia ou da semana em que pode ter alguma tranquilidade para mergulhar numa história. E um livro nunca é apenas a história em si. A leitura de certas maravilhas, aliás, não se esgota nem quando terminamos a última página.

A forma como a trama é construída, as opções de linguagem, os caminhos que o autor toma para sair de um ponto e chegar a outro, o desenvolvimento dos personagens, as questões que atravessam o pensamento do leitor enquanto a narrativa se desenrola. Tudo isso faz parte não só da construção literária, mas da própria graça da literatura. Daí que chega a ser infantil como tanta gente melindra com spoiler, como se uma obra de arte existisse apenas pelo desdobramento do enredo - aproveito para recomendar este artigo da Juliana de Albuquerque.

Sim, eu sei, é comum bons leitores desejarem ler muito mais obras do que conseguem. É um drama que só aumenta conforme a vida passa. Paradoxalmente, quanto mais lemos mais livros queremos ler. Mas trocar a leitura do que fez o autor por um esquema empobrecido elaborado por inteligência artificial é se enganar. A única forma de ler um livro é, afinal, percorrendo as páginas desse livro. E com calma, de preferência.

Não tenhamos pressa.

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