Flavia Guerra

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Representante do Japão no Oscar, Wim Wenders fala sobre 'Dias Perfeitos'

"Dias Perfeitos", em cartaz nos cinemas e em breve na Mubi, é dirigido pelo alemão Wim Wenders, mas representa o Japão na corrida ao Oscar de Melhor Filme Internacional 2024. Se isso soa curioso, basta saber mais da trajetória de Wenders para entender. Fã incondicional do cinema japonês, Wenders é apaixonado pelos filmes de Yasujiro Ozu e já dirigiu sobre o cineasta o longa "Tokyo Ga" (1985), documentários que investiga o cinema de Ozu e como ele captava com aparente simplicidade e perfeição a vida íntima e cotidiana do Japão, com entrevistas com parceiros do diretor e cenas de Tóquio.

 Cena de "Era Uma Vez em Tóquio", de Yasujirô Ozu, filme cujo nome do personagem  de Chishû Ryû (Shukichi Hirayama) inspirou o nome do protagonista de "Dias Perfeitos",
Cena de "Era Uma Vez em Tóquio", de Yasujirô Ozu, filme cujo nome do personagem de Chishû Ryû (Shukichi Hirayama) inspirou o nome do protagonista de "Dias Perfeitos", Imagem: Divulgação

O cineasta ainda foi convidado a dirigir a história nipônica de um projeto que retrata a relação das cidades com a moda. E disso nasceu o documentário "Notebook on Cities and Clothes", que traz, como o nome sugere, anotações sobre as cidades e a forma com que as roupas, a moda e o comportamento constroem seu dia a dia.

Dirigido em parceria com Yohji Yamamoto, nome importante da moda do país, o filme foi uma encomenda do Centro Georges Pompidou, em Paris, como parte de um projeto que tratava da relação profunda entre a moda e o cinema. Não por acaso, Wenders escolheu o Japão e Yamamoto para retratar, e os dois construíram uma história que revela o quanto a moda e o cinema são duas linguagens em constante comunicação e mutação.

"Dias Perfeitos", projeto de encomenda, mas muito autoral

Em "Dias Perfeitos", Hirayama (Koji Yakusho) é um faxineiro de banheiros públicos em Tóquio que faz seu trabalho com dedicação
Em "Dias Perfeitos", Hirayama (Koji Yakusho) é um faxineiro de banheiros públicos em Tóquio que faz seu trabalho com dedicação Imagem: Divulgação

Já "Dias Perfeitos", lançado nos cinemas do Brasil pela O2 Play, começou como uma proposta de filmar os banheiros públicos de Tóquio, mas se tornou uma ficção que celebra a beleza das pequenas coisas cotidianas, do trabalho bem feito, mesmo que seja limpar banheiros.

O ímpeto original para este filme não foi dele, entretanto. Nasceu da iniciativa de Yanai Koji da marca Uniqlo e Fast Retailing e do romancista/diretor criativo Takasaki Takuma. Em parceria com a Nippon Foundation e o bairro de Shibuya, em Tóquio, Yanai iniciou o Projeto The Tokyo Toilet, para renovar 17 banheiros públicos em Shibuya com base nas ideias de 16 arquitetos e designers de renome mundial na preparação para as Olimpíadas e Paraolimpíadas de Tóquio em 2020.

A ideia era subverter o senso comum de que banheiros públicos são sempre lugares sujos, escuros e perigosos. Projetos lindos, criados por nomes como Tadao Ando, NIGO e Shigeru Ban, mereciam ser conhecidos e ter mais atenção do mundo.

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Em "Dias Perfeitos", que nasceu como projeto de encomenda, Wim Wenders explora o valor do cotidiano e das coisas simples
Em "Dias Perfeitos", que nasceu como projeto de encomenda, Wim Wenders explora o valor do cotidiano e das coisas simples Imagem: Divulgação

"Não precisa perguntar duas vezes se eu quero ir a Tóquio. Mas eu não quis fazer um curta, um documentário e nem um ensaio fotográfico. A melhor forma de eternizar um lugar é fazer uma ficção. A gente vai ter que criar uma história em que estes banheiros aparecem, mas não é sobre eles. É sobre algo mais. E aí eu voltei a Tóquio logo depois da Pandemia e eu tive a sensação ótima de sentir que o bem comum estava de volta. E eu quis capturar este momento da cidade e contar uma história", explicou Wenders na coletiva de imprensa de "Dias Perfeitos" em Cannes 2023.

Banheiro, onde todos somos iguais

Para o cineasta, além do valor social, "o banheiro é um lugar onde todos somos iguais, onde não tem rico e pobre, jovem ou velho. Todo mundo é parte da humanidade."

Se ele precisava de uma história, precisava de um ator. E assim Koji Yakusho, ator respeitadíssimo no Japão que integrou o elenco de filmes como "Memórias de Uma Gueixa" e "Traffic"" entrou para o projeto. Yakusho, confirmando o senso comum sobre a dedicação nipônica ao trabalho, fez a lição de casa, passou uma semana limpando os banheiros em que o filme se passa junto com as equipes reais de faxineiros antes de Wenders chegar para filmar o longa.

A dedicação de Yakusho, um dos maiores nomes da atuação no Japão, valeu a pena, além de seu talento. Ele levou a Palma de Ouro de Melhor Ator em Cannes 2023 e é inegável que seu carisma, sua presença sutil, mas forte, em cena são cruciais para se entrar e se emocionar.

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História contada, voltemos ao que se vê na tela. "Dias Perfeitos: conta a história de Hirayama (Yakusho), um homem de meia-idade contemplativo, que vive uma vida modesta e serena, passando os dias equilibrando seu trabalho de faxineiro disciplinado e detalhista dos tantos banheiros públicos de Tóquio. Mas não é um simplório. Ele ama música e cada dia escolhe com cuidado o que vai ouvir (de Lou Reed a Nina Simone, passando por Velvet Underground ) em seu toca-fitas do carro a caminho do trabalho. Lê muito e gosta de fotografar a cidade.

Tokio Emoto, Koji Yakusho e Aoi Yamada em cena de "Dias Perfeitos"
Tokio Emoto, Koji Yakusho e Aoi Yamada em cena de "Dias Perfeitos" Imagem: Divulgação

Wenders constrói um roteiro em que, de início, acompanhamos a rotina de Hirayama. Ele acorda, arruma sua cama (ou seu futon), se arruma, pega seu café em lata na máquina do pátio do condomínio em que vive, entra no carro, põe sua música para tocar e segue para mais um banheiro, que limpa com o esmero de quem vai receber o imperador naquele dia.

São as personagens femininas, a namorada de Takashi, a sobrinha de Hirayama e a dona de um restaurante que ele frequenta, e por quem nutre uma certa admiração, que funcionam como agentes provocadores, que fazem com que Hirayama também saia de sua certa dormência e zona de conforto do silêncio.

Aos poucos, a relação com a sobrinha Niko (Arisa Nakano) evolui e as sombras tanto no passado dele quanto em seu presente vão surgindo, mas também sendo iluminadas. Não por acaso (e isso não é um spoiler) a cena final tem uma luz que aquece e derrete qualquer melancolia.

Koji Yakusho (Hirayama) e Arisa Nakano (Niko) em "Dias Perfeitos", que celebra a beleza da simplicidade e do cotidiano
Koji Yakusho (Hirayama) e Arisa Nakano (Niko) em "Dias Perfeitos", que celebra a beleza da simplicidade e do cotidiano Imagem: Divulgação
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"E todos os diálogos em que está envolvido antes são conversa fiada. Como as de seu assistente, que fala o tempo todo e Hirayama não sente que precisa acrescentar nada. E então, quando pensamos que ele não fala nada no filme, ele começa a falar. E, na verdade, você percebe que ele está bem, ele é antes de tudo, ele é um bom ouvinte. E então ele só quer dizer algo quando tem algo a dizer", completou.

A toque de caixa e toque de mestre

Filmado com a câmera na mão (para dar agilidade, uma vez que a equipe tinha apenas 15 dis para filmar, pois Yakusho tinha outro projeto já agendado), em janela quadrada, uma vez que muitas cenas se passam nos espaços apertados do apartamento de Hirayama, nos banheiros e no carro, "Dias Perfeitos" é um filme tão simples quanto sofisticado.

Pode parecer lugar comum, mas a despretensão de Wenders e a rapidez do projeto, neste caso, só ajudaram. Ao escrever e filmar com rapidez, simplicidade e "apenas" querendo construir uma crônica bonita, Wenders acertou em cheio e, sem fazer alarde, emplacou "Dias Perfeitos"não só no Oscar, mas na lista dos filmes mais queridos do último ano.

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