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Flavia Guerra

REPORTAGEM

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Cópia restaurada de "Deus e o Diabo na Terra do Sol" estreia na Cinemateca

"Deus e o Diabo na Terra do Sol" ganha cópia restaurada em 4k  - Divulgação
"Deus e o Diabo na Terra do Sol" ganha cópia restaurada em 4k Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

06/07/2022 13h32

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Depois de ser exibido em première mundial na seção Cannes Classics do festival francês, em maio, "Deus e o Diabo na Terra do Sol", obra seminal do cineasta Glauber Rocha, ganha a primeira sessão no Brasil nesta quarta, às 21h horas, na Cinemateca Brasileira. Antes da sessão, um debate às 19 horas reúne os restauradores José Luís Sasso, Rodrigo Mercês, Lino Meirelles e Paloma Rocha, ficha de Glauber.

A exibição integra a programação da mostra Espetáculo Polêmica Cultura, que marca a nova fase da Cinemateca, após ficar fechada ao público e ser, finalmente, assumida pela SAC (Sociedade Amigos da Cinemateca), que completa 60 anos. Até domingo, com ingressos gratuitos (basta chegar e retirar ingressos uma hora antes das sessões), a mostra traz obras que ajudam a contar não só a história do cinema brasileiro mas a História do Brasil.

Por que ainda, em pleno 2022, é tão relevante ver e debater "Deus e o Diabo na Terra do Sol"? A resposta é óbvia, mas vale lembrar que o filme dirigido por Glauber nos anos 1960 ainda continua atual ao revelar as entranhas e as dinâmicas de poder em um Brasil que enfrentava a fome e o subdesenvolvimento.

A trama conta a saga do vaqueiro Manuel( Geraldo del Rey) e sua mulher Rosa (Yoná Magalhães) pelo sertão depois que ele, cansado de ser explorado e enganado, mata o coronel dono das terras em que viviam. Em sua fuga, e em meio à seca e à violência, Manuel e Rosa se deparam com figuras reais, mas também simbólicas, da sociedade da época, que encontram seus ecos até hoje. Primeiro, conhecem o lendário Sebastião (Lídio Silva), que diz ser uma criatura divina e é a encarnação do messianismo que promete o paraíso e garante que o sertão vai virar mar e, em referência clara a Antonio Conselheiro, reúne milhares de fieis e ameaça o reinado da Igreja Católica.

Mas o destino deles ainda se encontra com o mercenário Antonio das Mortes (Maurício do Valle), matador de aluguel, contratado para por fim no messianismo de Sebastião. Eis que Corisco surge no caminho do casal. Vivido por Othon Bastos em uma das mais marcantes performances do cinema brasileiro, o cangaceiro comanda seu próprio bando depois que seu líder Lampião foi assassinado a mando dos poderosos da região. Se Sebastião se diz divino, Corisco garante que é demoníaco. Manuel e Rosa se dividem entre as forças opostas de Deus e do Diabo. Qual a saída em uma terra praticamente sem lei, sem desenvolvimento, sem direitos?

A pergunta persiste hoje e continuará nos perseguindo por décadas. Ver e rever "Deus e o Diabo" faz compreender melhor não o Brasil da Ditadura Militar ou colonial, mas o Brasil contemporâneo, ainda tão dividido. Em Cannes, estudantes de cinema fizeram fila felizes para conferir a cópia novíssima, restaurada em 4k do clássico que Glauber Rocha exibiu pela primeira vez no Festival de Cannes de 1964. Na saída, os jovens comemoravam o feito de ter visto um clássico do cinema mundial na tela grande com uma qualidade talvez até superior que o próprio original.

Obra essencial do Cinema Novo, Deus e o Diabo influenciou e influencia gerações de cineastas. O projeto de restauração do filme, realizada com obra privada, foi comandado pelo produtor Lino Meireles e a produtora e diretora Paloma Rocha, filha de Glauber.

Realizado na Cinecolor, empresa parceira da Cinemateca Brasileira, onde a cópia em película estava guardada, em cinco latas de negativos 35mm em perfeitas condições, além da sessão especial hoje, deve reestreiar nas telas brasileiras em breve. "É uma grande oportunidade relançarmos esta cópia em 4k para o mundo. Isso significa recolocar o Glauber no certame original dele, que é ao lado dos grandes diretores do mundo. Uma cópia impecável, uma nova revelação do negativo, um trabalho feito inteiramente feito no Brasil com técnicos brasileiros", comentou Paloma Rocha.

"É a volta deste negativo melhor talvez do que a primeira revelação que ele teve em 1964 porque agora temos tecnologia para trazer este negativo de fato como ele era. O trabalho de som também foi impecável (feito pelo José Luís Sasso), recolocamos o disco original do filme em vários momentos. E o trabalho de fotografia foi feito pelo Luís Abramo e o Rogério Morais, que trouxe uma xilogravura que o filme tem por sua própria natureza, pelo cenário e pela direção de fotografia de Waldemar Lima", completou Paloma, que também toca um novo projeto de resgate da obra do pai e cineasta.

"Glauber volta de tempos em tempos e meu trabalho é viabilizar que isso aconteça. Junto com "Deus e o Diabo" de volta, estamos lançando um projeto em parceria com o governo da Bahia para trazer os documentos inéditos dele, são mais de 50 mil itens. Agora vamos trazer por meio de um portal de acesso, o Tempo Glauber Digital Bahia, mais de 12 mil documentos para consulta. A grande estrela desta festa é "Deus e o Diabo". A obra do Glauber, como ele mesmo dizia, é "o novo é eterno", completou Paloma.

A programação da mostra "Espetáculo Polêmica Cultura" exibe ainda outras obras essenciais como "A Hora e a Vez de Augusto Matraga", de Roberto Santos, "O Anjo Exterminador", de Luís Buñuel, "Esses Maridos", de Luigi Comencini, "Os Subversivos", de Paolo Taviani e Vittorio Taviani, "Os Cafajestes", de Ruy Guerra, "Garrincha - Alegria do Povo", de Joaquim Pedro de Andrade, entre outros.