Corpo pesado, mente leve

Medalhista olímpico, Daniel Cargnin relata luta contra balança e mira ouro em Paris-2024

Beatriz Cesarini Do UOL, em São Paulo Lara Monsores

Dias antes de conquistar a medalha de bronze nos Jogos de Tóquio em 2021, Daniel Cargnin foi caminhar pela Vila Olímpica para registrar uma foto nos famosos aros olímpicos. O passeio foi interrompido porque o judoca passou mal. Ele estava em dieta rígida para bater o peso de sua categoria: até 66 quilos.

Daniel retornou ao quarto, refletiu e chegou a conclusão que a própria vida estava resumida em seu peso. Ele não conseguia comer sem pensar em como perderia o que ganhou na refeição. O atleta, então, decidiu que Tóquio-2021 seria a última competição na categoria. As próximas seriam em até 73 quilos.

Quando se livrou das neuras para alcançar o peso correto, Daniel passou a lidar com comentários negativos sobre sua escolha. Muitos profissionais em volta do judoca pensaram que a carreira dele iria ladeira abaixo.

Com ajuda de terapeutas e da família, Daniel entendeu que o mais importante era ter a mente livre de pensamentos ruins para conseguir o alto nível de competitividade. Com o corpo mais pesado e a cabeça mais leve, o atleta conseguiu rapidamente bons resultados na nova categoria e, agora, mira o topo tanto no Pan de Santiago como nas Olimpíadas de Paris-2024.

Lara Monsores

'Minha vida era treinar e chegar no peso'

Daniel começou a carreira profissional em 2016 direto na categoria até 66 quilos. A partir de então, a pressão para se manter dentro do peso permitido virou a sina do atleta. Foram sete anos de tensão contínua.

"A minha vida era treinar e dar o peso. Eu não treinava focado nas competições, só me preocupava com a balança. Eu ia jantar com a minha família pensando o quanto que eu ia ter que tirar de peso depois da refeição", descreveu Daniel.

Durante o isolamento forçado pela pandemia de covid-19, Daniel viveu o pior período de ansiedade. As Olimpíadas foram adiadas e o judoca, sem poder treinar intensamente, sentia medo de pisar na balança.

"Eu não queria pesar. Eu estava trancado em casa e pensava que poderia me fazer mal. Ao mesmo tempo, eu não fazia ideia de quanto eu estava pesando e não podia treinar no clube. Foi complicado", contou o medalhista olímpico.

Jack Guez/AFP Jack Guez/AFP

Quase desistiu do judô

A preocupação com cada quilo era tão grande que Daniel pensou em abandonar o judô. E não era largar o esporte, que é o que o sustenta hoje, mas desistir de competir, de buscar vitórias em grandes competições.

"Eu não era feliz fazendo aquilo. Eu ia para o treino e não pensava muito em melhorar e evoluir meu judô. Na verdade, eu só focava em tirar o peso. Aquilo virou uma loucura. Um dos grandes exemplos é que eu chegava de viagem para uma competição, colocava casaco e ia correr", contou Daniel.

As Olimpíadas finalmente ocorreram entre julho e agosto de 2021. Daniel foi a Tóquio e, antes de pisar no tatame para competir, resolveu passear pela Vila Olímpica e acabou se sentindo mal.

"Fui distrair um pouco a cabeça, para não pensar em comer. Caminhei um pouco, queria tirar uma fotos. Mas fiquei muito tonto. A preocupação bateu e voltei para o quarto sozinho", contou Daniel.

Era um claro sinal de alerta para a mudança. "Naquele momento, eu pensei que seria minha última tentativa na antiga categoria. Já tinha passado bastante tempo nela. Então, decidi dar tudo de mim, porque sabia que seria minha despedida naquele peso", acrescentou.

Gaspar Nóbrega/COB Gaspar Nóbrega/COB

'Suportei o ciclo olímpico'

O momento que deveria ser o mais prazeroso da vida de Daniel, na verdade foi um fardo. Durante as Olimpíadas, o judoca não curtiu a experiência e só queria que tudo aquilo terminasse.

"Eu não vivenciei, eu suportei o processo do ciclo olímpico passado. Eu pensava: 'só mais um dia, eu não aguento mais'. Lógico que a medalha foi muito importante, mas eu queria conseguir a medalha, e me sentir mais feliz com isso, sabe?", comentou Daniel, que admitiu que não se sentia pronto para disputar a maior competição esportiva do mundo.

"Já foi muito difícil comigo conseguindo o bronze, imagina se eu fosse ainda mais imaturo? Não tenho vergonha nenhuma de falar que eu não estava psicologicamente preparado para as Olimpíadas", continuou o atleta.

Já foi muito difícil comigo conseguindo o bronze, imagina se eu fosse ainda mais imaturo? Não tenho vergonha nenhuma de falar que eu não estava psicologicamente preparado para as Olimpíadas"

Daniel Cargnin, judoca brasileiro

'Olhares desconfiados'

Assim que subiu de categoria, Daniel percebeu que precisava de ajuda profissional. Ao mesmo tempo em que ganhou mais liberdade com o corpo, passou a ouvir comentários negativos à sua volta. Ele sempre teve a família como principal apoio, mas decidiu iniciar terapia com um psicólogo.

"Um ano após as Olimpíadas de Tóquio, eu consegui chegar à semifinal do Pan-americano de Judô já na categoria até 73 quilos. Só que fraturei a costela e tive de desistir. No meu quarto, ouvi uma pessoa da comissão duvidar da minha capacidade na nova categoria e que talvez não era nem para eu ter sido convocado para aquele Pan", descreveu Daniel.

Aquilo derrubou o atleta, mas com o apoio profissional ele conseguiu reverter a situação. Transformou as críticas em motivação e aí a primeira medalha veio no Mundial de Tashkent 2022, no Uzbequistão. Atualmente, Daniel é o sexto colocado no ranking mundial da sua nova categoria.

Lara Monsores Lara Monsores

Feliz na vida, feliz no tatame

Uma das principais lições que Daniel aprendeu e passou a praticar após as consultas com o psicólogo foi o equilíbrio da mente em sua vida em geral. Até porque, o Daniel que entra para competir no tatame é o mesmo que se diverte com a família.

"Eu busco ser uma pessoa melhor e trabalhar com os pés no chão. Sinto que quando eu estou feliz fora do tatame, eu consigo ser mais feliz dentro", destacou.

Grande parte da felicidade é graças à decisão pela mudança de categoria. Sem a preocupação exagerada com o peso, Daniel consegue focar no planejamento da carreira e no fechamento de ciclos a cada competição.

"Hoje dia eu sou um Daniel bem mais feliz. Dentro do esporte, o psicológico manda em muita coisa. Após a minha decisão, eu acredito mais nas coisas que eu faço e já consegui bons resultados. Antes, a impressão é que eu não conseguia nem respirar. Agora, com esse sentimento, consigo sonhar com a medalha de ouro em Paris", refletiu Daniel.

Franck Fife/AFP Franck Fife/AFP

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