Topo

Olhar Olímpico

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Autorizar russos e belarussos a competir em Paris é difícil, mas é o certo

A belarussa Aryna Sabalenka, campeã do Australian Open: ela pode ficar fora dos Jogos de Paris-2024 - Reuters
A belarussa Aryna Sabalenka, campeã do Australian Open: ela pode ficar fora dos Jogos de Paris-2024 Imagem: Reuters

30/01/2023 13h00

Esta é parte da versão online da newsletter Olhar Olímpico, enviada hoje (30). A newsletter completa traz também uma análise da vitória brasileira nas duplas mistas no Aberto da Austrália e de Nathalie Moellhausen, da esgrima, no Grand Prix de Doha. Quer receber antes o pacote completo, com a coluna principal e mais informações, no seu e-mail, na semana que vem? Clique aqui. Para conhecer outros boletins exclusivos, assine o UOL.

**********

Gosta de bandido? Leva para casa".

A mesma lógica perversa de parte numerosa da sociedade brasileira, de defender que o "bandido" (sempre o pobre, quase sempre preto e periférico) não tenha acesso a qualquer direito, também impulsiona o movimento que trata como inadmissível que russos e belarussos disoutem os Jogos Olímpicos e Paralímpicos de Paris, em 2024.

A lógica é de que a Rússia, ao invadir a Ucrânia, está matando civis e destruindo a infraestrutura ucraniana, e uma das formas de pressionar o governo de Vladimir Putin a recuar é impedir o país de participar dos Jogos.

Em tese.

Porque, convenhamos, ninguém acha que a Rússia vai recuar da guerra, questão de honra para Putin, por causa de uma Olimpíada. Os russos não puderam participar de nenhum Mundial em 2022 (foram punidos inclusive na Copa de futebol), o que não evitou um só tiro. Aliás, tudo isso vale também para os belarussos, aliados da Rússia no conflito.

Assim, o movimento é baseado em punitivismo. A Rússia iniciou uma guerra e, por isso, deve ser condenada a não ter atletas em Paris. Ok, mas se há punição há, também, um julgador. E não há nada que dê legitimidade para esse ou aquele serem os juízes responsáveis por tal julgamento.

Os Estados Unidos, como sempre, se apresentam como donos desse direito. Não são, por óbvio. Aliados da Ucrânia e rivais geopolíticos da Rússia, os EUA não têm a neutralidade necessária para arbitrarem, por mais que tentem (como tentaram).

Quem também se posicionou contra os russos nos principais eventos esportivos foi a Noruega — não por coincidência, os dois países são os que mais se beneficiariam esportivamente da medida, no âmbito dos esportes de verão e inverno, respectivamente.

Não cabe individualmente aos EUA, à Ucrânia ou ao bloco europeu, ameaçado pela Rússia, decidir se os russos podem ou não competir. Assim como nunca coube aos árabes dizer se Israel tinha ou tem o direito de competir, apesar dos muitos ataques à Palestina. Assim como, vejam só, nunca coube ao Iraque, invadido pelas forças militares dos EUA, dizer se os americanos deveriam ser banidos dos Jogos Olímpicos.

A minha opinião pessoal sobre o ataque russo à Ucrânia ou o norte-americano ao Iraque não faz diferença, porque da mesma forma que não cabe a mim este julgamento, também não cabe ao Movimento Olímpico.

Se a Rússia cometeu crimes de guerra, que seus líderes sejam condenados nas instâncias competentes — competência que o COI nunca teve e nem terá. Os atletas russos não podem ser punidos por uma ação de seu governo, por pior que seja essa ação.

O governo brasileiro parece ter sido responsável pela morte de centenas de crianças yanomamis, e nem por isso os atletas brasileiros devem ser impedidos de competir, nem mesmo aqueles (que, infelizmente, são muitos) que apoiaram politicamente o governo que causou esse genocídio.

Um dos argumentos usados pelo movimento olímpico americano e pela imprensa do país é que muitos atletas russos são ligados ao Exército russo que invadiu a Ucrânia. É verdade. Assim como muitos atletas norte-americanos também fazem parte do programa militar que mais atacou outros países no último século. Só em Tóquio eram 19 atletas militares na delegação dos EUA.

Reconheço que, no caso da Rússia, o fato de o ataque à Ucrânia ameaçar a OTAN e a maior parte das nações mais ricas do mundo põe uma pressão extra sobre os russos. E isso, aliado ao escândalo recente de doping, inviabiliza a participação da Rússia como país em Paris. Não há clima para tanto. Mas as pessoas russas têm direito de competir as Olimpíadas.

Em 1992, o país que ainda se chamava Iugoslávia (depois rebatizado como Sérvia e Montenegro) estava sob sanção da ONU. Os então iugoslavos foram a Barcelona com um time independente, que competiu sob a bandeira do Movimento Olímpico. Acho que esta seria uma decisão coerente para a situação dos atletas russos.

Enquanto a associação Global Athlete, que faz nítido lobby a favor dos interesses norte-americanos, acusa o COI de ser aliado da Rússia, o Comitê Olímpico Internacional faz bem em levar adiante seu plano. Por ele, russos podem competir sob bandeira neutra, desde que individualmente não tenham se posicionado a favor da guerra.

A discussão parece longe do fim, mas é muito improvável que Paris-2024 não tenha russos. Vai estar todo mundo na Cidade Luz daqui um ano e meio, porque também as ameaças de boicote dificilmente vão se concretizar.

***

LEIA A NEWSLETTER COMPLETA