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Desacelera SP: Ela criou movimento que propõe ritmo de vida mais lento

A pesquisadora e ativista Michelle Prazeres - Paulo Pereira/Desacelera SP
A pesquisadora e ativista Michelle Prazeres Imagem: Paulo Pereira/Desacelera SP

Rafael Burgos

Colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP)

05/09/2022 06h00

Quando se preparava para dar à luz ao seu primogênito, em 2011, a pesquisadora Michelle Prazeres não imaginava que dali brotaria uma transformação pessoal decisiva: um novo olhar para sua relação com o tempo. A experiência materna lhe ensinaria que, para dar lugar ao afeto, era preciso desacelerar, ainda que tudo a sua volta a pressionasse em sentido contrário.

Idealizadora do 'Desacelera SP', iniciativa que atua na formação e mobilização de pessoas para uma vida mais consciente e saudável na capital paulista, a ativista acredita que a defesa da chamada 'cultura slow' nunca foi tão necessária.

"As principais doenças da contemporaneidade — como o burnout, a ansiedade e a depressão — guardam uma relação com o tempo e a produtividade. Será que estamos parando pra pensar nessa velocidade que está colocada como regra?", questiona.

Em conversa com Ecoa, Michelle falou sobre seu engajamento no 'Desacelera SP' e como a iniciativa, inicialmente focada na promoção do bem-estar individual, caminhou para pensar coletivamente novos modelos de cidade, que privilegiem as saúdes física e mental, a convivência afetiva e a luta contra a emergência climática.

"Gosto de pensar que, como diz o (crítico literário) Antonio Candido, tempo não é dinheiro, como o capitalismo faz a gente acreditar. O tempo é o tecido da vida. E, sendo assim, nós temos o direito de usar esse tempo de uma forma humanizada. Qualquer luta por justiça social deve começar com uma luta pelo uso humano do tempo", destaca Michelle, que também atua como pesquisadora e professora universitária no campo da comunicação.

Um 'braço' da cultura slow no Brasil

Fundado em 2016, o movimento 'Desacelera SP' é um braço da chamada cultura slow, movimento internacional que propõe uma tomada de consciência acerca de nossa relação com o tempo. Para seus defensores, compreender o caráter artificial — e, portanto, não natural — de nosso ritmo cotidiano é um passo importante para retomar a 'velocidade certa': não uma defesa da lentidão, mas de uma velocidade que respeite mente e corpo, e que coloque as relações humanas à frente da produtividade.

"Quando falamos em desacelerar, muita gente associa à meditação, práticas desse tipo. Mas não é apenas sobre isso, a questão que importa é desacelerar o planeta, é recobrar a nossa humanidade. E, desse ponto de vista, estamos falando de uma agenda política, do direito ao tempo como condição para todas as outras lutas por justiça social. O capitalismo se apropria, cada vez mais, de todo o nosso tempo e a tendência é que o consumo e o entretenimento ganhem espaço em detrimento de qualquer atividade reflexiva", destaca a ativista.

Um resgate do orgânico e do artesanal, em defesa do consumo consciente e da economia solidária: a partir desses princípios, a iniciativa, que se autodenomina uma 'desaceleradora de pessoas e negócios', expandiu sua rede ao longo dos últimos anos. Começou com o Guia Desacelera SP, um mapa de lugares para desacelerar na capital paulista, e hoje também atua na formação de lideranças, mobilização política e produção de conteúdo sobre o universo slow.

Primeiro festival da cultura slow no Brasil, o Dia sem Pressa, organizado pelo Desacelera, terá sua 5ª edição no próximo sábado, dia 10, realizado em parceria com a 3ª edição do Vila Buarque Solidária. A programação envolve oficinas de leitura e de artesanato, como de tingimento vegetal, além de atividades como yoga, brincadeiras de rua, danças circulares, dentre outros.

Atividade de yoga na edição de 2019 do Dia sem Pressa - Paulo Pereira/Desacelera SP - Paulo Pereira/Desacelera SP
Atividade de yoga na edição de 2019 do Dia sem Pressa
Imagem: Paulo Pereira/Desacelera SP

É urgente desacelerar?

Com a crescente aceleração da vida nas metrópoles, muito provocada pelos avanços tecnológicos, somada ao novo mundo do trabalho e à digitalização da vida na pandemia, Michelle e os outros três integrantes do Desacelera — Edu Cordeiro, Solano Diniz e Elaine Santos — se viram diante de um paradoxo. Ano a ano, sua causa ganhava contornos de urgência.

"A gente até brincava que, na verdade, 'urgente é gente'. Tudo se tornou urgente e, com isso, as relações humanas vão se enfraquecendo. Se a gente aceita essa premissa, onde ficam os sentidos, nossa sensorialidade, a convivência na cidade?", questiona.

A partir de conversas com moradores de São Paulo pela rede do Desacelera, a ativista percebeu que os problemas de saúde mental eram uma realidade crescente na cidade e que a sanha por produtividade estava na origem de muitas dessas questões.

Neste Setembro Amarelo, mês da prevenção ao suicídio, discutir a saúde mental se confunde com repensar uma cultura que premia o trabalho exaustivo e a busca incessante por resultados.

"Para desacelerar, a gente precisa chegar à vida concreta das pessoas. E o Dia sem Pressa faz parte de uma estratégia pedagógica nessa direção: um espaço público de conversa, de escuta das vivências, como modo de articular essa luta", destaca.

Pensar o tempo, repensar o trabalho

Segundo pesquisa online promovida pelo Ibope (Instituto Brasileiro de Opinião e Estatística), 84% dos brasileiros buscam uma rotina de autocuidado, mas apenas um terço da população está conseguindo exercitar isso na prática. Com a crescente mistura entre as vidas pessoal e profissional, somada à informalidade que afeta parte significativa dos brasileiros, a discussão sobre as formas de trabalho e o seu lugar em nossas rotinas tem ganhado um valor ainda maior.

Nesse sentido, a Escola do Tempo, uma das iniciativas do Desacelera, tem buscado formar lideranças voltadas a culturas de cuidado e à promoção da qualidade de vida no mundo corporativo.

"Se a gente não mexer na nossa relação com o trabalho, não há transformação possível. O trabalho talvez seja a principal engrenagem dos problemas do tempo que hoje afetam a sociedade. Então, a gente percebeu a necessidade de entrar nesses ambientes corporativos, buscando fomentar as culturas de cuidado nesses lugares", lembra Michelle.

Desacelere - Claudia Taddei/Yoga & Terapia Integrativa - Claudia Taddei/Yoga & Terapia Integrativa
Imagem: Claudia Taddei/Yoga & Terapia Integrativa

Situar a luta pelo tempo em seu cruzamento com o mundo do trabalho é também, para ela, um modo de responder a críticas que veem no movimento slow um viés elitista.

"Muitas vezes nos acusam de elitismo, já que essas são questões que costumam afetar moradores de grandes cidades, mas a luta pelo tempo, na verdade, atravessa todas as classes. O cara que vem de um lugar privilegiado, que mora no centro e anda de helicóptero, não tem as mesmas 24h de uma dona de casa, mãe solo, que mora na periferia", finaliza.