Topo

Ele treina a seleção brasileira de futsal Down e hoje é campeão mundial

Divulgação
Imagem: Divulgação

Ana Prado

Colaboração para Ecoa, de São Paulo

17/05/2021 06h00

"Eu gosto muito de treinar pela seleção brasileira, estar com outros atletas que são meus amigos, viajar para participar dos campeonatos para defender o Brasil. Sou muito feliz por isso", diz Juan Rodrigues Nascimento da Silva, de 31 anos, jogador da seleção brasileira de futsal Down.

O Brasil é o atual campeão mundial da modalidade, conquista que veio coroar o trabalho de mais de uma década do técnico e ex-jogador de futebol Cleiton Monteiro, 47. Com passagem por grandes times nacionais, Cleiton encerrou sua carreira como atleta por causa de uma lesão em 2005, quando jogava em um clube do Canadá.

De volta ao Brasil, passou a participar de jogos beneficentes para ajudar instituições de apoio a pessoas com deficiência. Numa dessas ocasiões, jogou um amistoso em Taubaté (SP) para a abertura das Olimpíadas das Apaes (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais), e saiu de lá impactado. "Eu ainda não tinha visto os atletas com deficiência jogando tão de perto, e o desempenho deles me impressionou", conta.

Com esses eventos, ficou conhecendo melhor o trabalho da Confederação Brasileira de Desportos para Deficientes Intelectuais (CBDI) e passou a ter contatos ali. Foi alguém de lá que lhe contou que a Apae de Osasco (SP) estava enfrentando dificuldades para se manter funcionando. Cleiton estava morando na cidade e se ofereceu para ajudar.

A oferta foi aceita e ele instituiu aulas de educação física para as crianças, jovens e adultos que passavam o dia no espaço. "Muitos nunca tinham pisado numa quadra e isso é um desperdício: o esporte ajuda a combater o sedentarismo e promove maior interação entre eles", explica.

Desafios com o novo time

Pouco tempo depois, em 2007, veio um convite de Adilson Ramos, presidente da CBDI, para trabalhar na confederação. Ele topou e logo se tornou coordenador técnico do futsal para atletas com síndrome de Down.

Ao começar a trabalhar com o time, no entanto, percebeu que teria de se adaptar. "No começo, quando tentei usar o linguajar técnico, eles ficaram olhando para mim como se eu estivesse falando chinês", lembra. Ele passou a usar termos mais literais, mas não só: "Entendi que precisava conhecer cada um deles individualmente para entender como me comunicar com eficiência."

Outro desafio foi lidar com pais superprotetores. "Tinha atleta que não sabia amarrar tênis, que o pai entrava no vestiário para ajudar a trocar de roupa. Fui cortando isso porque não quero ser só mais um, quero ser alguém que vai fazer a diferença na vida deles", conta. Por isso, uma de suas primeiras medidas foi pedir que os pais parassem de assistir aos treinos para dar mais espaço e independência aos jogadores.

Ele conta que foi um esforço de longo prazo, mas que deu resultados. "Hoje, os pais dizem que o filho se tornou outra pessoa - têm muito mais autonomia e são mais sociáveis", comemora. "Quando chegam para os treinos, dizem 'pai, vai lá fora tomar uma cerveja enquanto me espera', porque não querem que eles fiquem junto".

O nascimento da seleção

A história do técnico que conquistou o título mundial de futsal down para o Brasil - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

Buscando incentivar o surgimento de mais equipes de futsal Down, Cleiton começou a bater na porta de grandes clubes de futebol. O primeiro foi o Corinthians, onde já havia jogado, e deu certo: a equipe foi criada em 2008 e existe até hoje. Com os times sendo formados, ele começou a estruturar pequenas competições junto com a CBDI.

A seleção brasileira, no entanto, só nasceu em 2011, quando a confederação convidou a Venezuela e o Chile para participar de um torneio no Guarujá (SP). Na mesma época, a CBDI também estava organizando uma competição nacional, e coube a Cleiton o desafio de montar rapidamente uma seleção reunindo os melhores atletas desses times. "Nós nem chegamos a treinar muito como seleção. Tinha atletas que eu não conhecia por serem de outras cidades, e contei com a ajuda dos técnicos para saber como agir com cada um", explica.

Os venezuelanos estavam mais preparados e foram os campeões. Mas o Brasil, mesmo sem treino, ficou em segundo lugar. Com a boa experiência, Cleiton e a CBDI passaram a investir esforços em desenvolver a recém-formada seleção, além de estruturar competições nacionais maiores. Tudo isso fez com que o número de equipes fosse crescendo a cada ano, e sua qualidade, aumentando. Segundo ele, hoje já são mais de 40 pelo Brasil, algumas em parceria com clubes de futebol e outras independentes.

Frustração: campeonato mundial sem o Brasil

Paralelamente a isso, outros países faziam o mesmo movimento e, em 2017, foi realizado o primeiro campeonato mundial da modalidade, em Portugal. O Brasil ficou de fora: mesmo organizando uma vaquinha online, não houve recursos suficientes para viajar ao país europeu.

Ainda hoje, um dos grandes desafios de Cleiton é divulgar a existência e o trabalho da seleção. "Por não serem modalidades paralímpicas, o futebol e o futsal down não recebem recursos do Comitê Paralímpico Brasileiro e dependem de verba do governo ou patrocínio de empresas. E para isso precisamos chamar a atenção da sociedade", explica.

Para garantir a participação do Brasil, ele se empenhou em trazer o mundial seguinte para o país, em 2019. "Era nossa única chance de não ficar de fora por falta de recursos, já que não tínhamos patrocínio na época". A candidatura foi aprovada, e a CBDI conseguiu apoio financeiro de iniciativas públicas e privadas para a realização dos jogos.

Com a participação garantida, a seleção brasileira começou a treinar intensamente. "Esse período de preparação permitiu que os jogadores entendessem de fato o que é ser atleta e o que significa trabalhar em equipe para conseguir um resultado", conta o técnico.

Desafios superados

A história do técnico que conquistou o título mundial de futsal down para o Brasil - Divulgação - Divulgação
Cleiton Monteiro, técnico e fundador da Seleção Brasileira de Futsal Down
Imagem: Divulgação

O jogo de estreia do mundial de 2019 foi Brasil e Argentina, com o time da casa vencendo por 5 a 2. A seleção manteve o alto nível nas partidas seguintes e chegou à final, quando enfrentou novamente os argentinos. Mas aí a pressão começou a se fazer sentir. Na manhã do jogo, alguns jogadores estavam tão ansiosos que Cleiton achou melhor cancelar o treino e deixar o time descansar no hotel.

Mais tarde, o técnico fez um discurso para motivá-los lembrando de tudo o que passaram para chegar até ali. "Todo mundo começou a contar sua história e se emocionar, mesmo aqueles que tinham mais dificuldade com a fala", lembra.

Revigorada, a seleção se dirigiu para o ginásio de Ribeirão Preto, no interior paulista. Ainda no ônibus, eles se surpreenderam ao ver uma multidão chegando para acompanhar a final. "Tinha excursões de outros estados, torcidas organizadas, barraquinhas de comida", lembra Cleiton. "Tudo aquilo nos deixou emocionados".

O jogo bateu recorde de público e, na arquibancada, viam-se muitas famílias com bebês e crianças com síndrome de down. O placar também rendeu emoções, com o Brasil vencendo de 7x5. "Eles entenderam a responsabilidade e corresponderam, e cresceram com isso. Nem pareciam os mesmos que estavam tão assustados no treino", comenta o técnico.

O legado do mundial

Para ele, a vitória significou bem mais que o título - agora, as novas gerações com síndrome de down têm vários atletas em quem se inspirar. "Os jogadores da seleção brasileira não tinham referências, mas os próximos já vão ter", comemora. "Já tem crianças dizendo que querem ser igual ao Rafael, eleito o melhor goleiro do mundo".

Com a pandemia, a seleção tem feito treinos online para se preparar para a próxima competição, que acontecerá em 2022 no Peru. Cleiton tem investido em aulas teóricas para que os atletas possam conhecer a história do esporte e debater o estilo de jogo das outras equipes que irão enfrentar. A ideia é que os treinos presenciais voltem quando os atletas estiverem vacinados, seguindo protocolos de segurança e de forma escalonada.

As questões financeiras já não tiram o seu sono: a partir deste ano, a seleção conta com patrocínio oficial da Gillette, que também apoiará iniciativas para a promoção da modalidade. "Quando conhecemos o trabalho feito pela CBDI com a Seleção Brasileira de Futsal Down, percebemos imediatamente a sinergia com o nosso propósito. Há muitos tabus presentes na sociedade em torno de pessoas com síndrome de down, e o que os atletas da seleção fazem é desafiar as expectativas e quebrar esses tabus diariamente", diz Bruno Martins, diretor de marketing da empresa.