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Megacidades podem ficar sem água, e armazenar chuva surge como solução

Família mexicana posa ao lado de estrutura de cisterna instalada pelo projeto Isla Urbana - Divulgação
Família mexicana posa ao lado de estrutura de cisterna instalada pelo projeto Isla Urbana Imagem: Divulgação

Rodrigo Bertolotto

De Ecoa, em São Paulo

29/11/2020 04h00

A combinação de mudanças climáticas, crescimento populacional e ações humanas equivocadas pode deixar muitas grandes cidades pelo planeta sem água suficiente para seus habitantes até o ano de 2030. Uma pesquisa feita pela Organização das Nações Unidas, realizada em 500 metrópoles, apontou que uma em cada quatro delas vai sofrer "estresse hídrico". Nessa lista estão megalópoles como São Paulo, Cidade do México e Tóquio.

Na capital mexicana, uma iniciativa de um jovem designer industrial está antecipando esse problema olhando para os céus: captar a água das chuvas por um sistema simples de calha, canos, filtros e caixa d´água. A maior inovação é levar isso para as casas em bairros que enfrentam constante falta de abastecimento.

Enrique Lomnitz fundou em 2009 o projeto Isla Urbana, que instalou mais de 20 mil cisternas em regiões periféricas e rurais, além de aldeias indígenas. Só para se ter dimensão do problema: 20% da população da maior região metropolitana da América Latina tem água apenas durante parte do dia e em alguns dias da semana. Isso representa 4,4 milhões de pessoas. O sonho de Lomnitz é que sua cidade seja a primeira do mundo a fazer uma transição em que as captações domésticas das chuvas estejam integradas no sistema geral.

A Cidade do México tem a particularidade de ter sido erguida sobre uma lagoa, mas sua superfície foi tão asfaltada e seu aquífero foi tão explorado que o solo da cidade afundou pelo menos dez metros durante o século 20, e os poços tiveram que ampliar sua profundidade de 50 para 400 metros para atingir as águas subterrâneas.

O designer industrial Enrique Lomnitz, criador do projeto Isla Urbana - Divulgação - Divulgação
O designer industrial Enrique Lomnitz, criador do projeto Isla Urbana
Imagem: Divulgação

"A cidade gasta uma enormidade de energia elétrica para bombear 30% da água que necessita de fontes que estão a 150 quilômetros de distância e 1.000 metros montanha abaixo. É insano. Na Cidade do México, em três ou quatro gerações vamos esgotar o aquífero. É um caso bem extremo, mas esse cenário futuro projetado para o mundo você vê aqui a olho nu agora", relata Lomnitz.

Megacidade, mega problemas

Conhecida num passado recente como "a cidade da garoa", São Paulo viveu uma seca em 2014 que deixou seus reservatórios quase secos e gerou um desabastecimento que seguiu até o final de 2015. Além da falta de chuva, a falta de investimentos e de conexão entre as represas foram as razões da crise.

Outras cidades famosas por serem chuvosas estão na lista da ONU de localidades ameaçadas. Londres é um exemplo: sua média pluviométrica caiu nos últimos anos, e a prefeitura prevê crise séria até 2040. Já Tóquio tem suas chuvas concentradas em quatro meses do ano, e as autoridades locais desenvolveram um projeto que possibilitou que mais de 800 prédios públicos e privados coletem e armazenem água de chuva.

A ação humana direta também influencia no desabastecimento. No Cairo, capital do Egito, o rio Nilo é responsável por 97% da água, mas ele é também destino cada vez maior de resíduos agrícolas e esgoto urbano. A previsão é que uma crise hídrica grave chegue antes de 2025.

Por seu lado, em Miami (EUA) o problema foi a drenagem dos pântanos vizinhos, o que abriu caminho para a água salgada do Oceano Atlântico contaminar o aquífero Biscayne, principal fonte da cidade - a atual elevação dos mares piora ainda mais a situação. Já em Moscou, a acelerada industrialização do período soviético comprometeu mais de 35% das reservas de águas russas.

Outra cidade ameaçada é Pequim. A China tem 20% da população mundial, mas apenas 7% da água doce do mundo. Além disso, os rios e lagos estão muito poluídos: 40% da água da superfície da região de Pequim, por exemplo, está tão suja que não pode ser usada pela agricultura nem pela indústria.

Casa na Cidade do México equipada com sistema de cisterna desenvolvido por Enrique Lomnitz - Divulgação - Divulgação
Casa na Cidade do México equipada com sistema de cisterna desenvolvido por Enrique Lomnitz
Imagem: Divulgação

Autonomia e descentralização

"Tínhamos uma enorme abundância, e houve um desperdício muito grande. Some a isso as mudanças climáticas, que deixam o regime de chuvas muito irregular. Às vezes, ficamos seis meses sem uma gota vinda do céu. A lição é que temos que aproveitar as precipitações com a máxima eficiência e fazer nossa poupança líquida", aponta Lomnitz, que distinções que recebeu do MIT (Massachusetts Institute of Technology) e da National Geographic Society, fazendo parte do grupo de Emerging Explorers .

A iniciativa aumenta a autonomia das populações e descentraliza a infraestrutura de coleta e armazenamento de água, ampliando o conhecimento e a independência das pessoas.

"Antes, isso parecia uma coisa de hippies. Mas as pessoas vão percebendo cada vez mais a importância. Há uma mudança de paradigma. As circunstâncias nos obrigam a uma solução viável. Temos que popularizar as técnicas e reduzir os custos. E depois dar desconto nas contas públicas para quem capta água para o sistema, assim como deve acontecer com quem produz energia solar e tem excedente", opina o designer.

Em outro aspecto, a captação de água e de energia solar se equivalem: nos custos. O sistema com cisterna de 10 mil litros, filtros, canos e canaletas sai por volta de R$ 11 mil, um valor aproximado dos R$ 12 mil que é o custo médio do kit de energia solar.

"De qualquer forma, esse sistema com cisterna é 50% mais barato que levar caminhões pipa ou fazer perfurações no solo. Por isso, vários governos estão nos ajudando", afirma Lomnitz.

No Brasil, há o exemplo do Programa Cisternas, que desde 2003 construiu mais de 1,3 milhão de estruturas para captação de chuva. O projeto federal se concentra nos meios rurais, principalmente no semiárido nordestino, onde a seca anual dura, pelo menos, oito meses. O problema é que o investimento caiu nos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro e ainda faltam instalar mais 350 mil cisternas para zerar o déficit de famílias sem água potável no sertão. A água captada tem como finalidade o uso doméstico, mas também pode servir para irrigação de um terreno de agricultura familiar.

Por seu lado, a ONG Engenheiros Sem Fronteiras monta sistemas de captação em cidades, especialmente em edifícios públicos como escolas e centros culturais. "Nossa prioridade é a água de reuso para que essas instituições possam fazer sua limpeza, sua rega e ajudar em parte seu sistema hidráulico", conta a engenheira ambiental Mariana Gomes, uma das voluntárias do grupo em Viçosa (Minas Gerais). A organização não-governamental desenvolve programas com prefeituras e também por meio de editais de empresas estatais e privadas.

A iniciativa mexicana também faz esses convênios com governos e outras fundações, e ainda vende a tecnologia para particulares que querem ter sua reserva de água e estão preocupados com as mudanças do planeta - o kit mais barato custa por volta de R$ 4.000.

"Nos grandes centros, priorizamos os sistemas de água de reuso, porque a atmosfera e a superfície estão muito contaminadas, e as pessoas têm mais fácil acesso aos centros de purificação e distribuição. Já nas áreas rurais, o importante é levar água potável para quem está mais isolado. Somos um país de montanhas, há muita dificuldade da água encanada chegar", conta Lomnitz.

A ação mexicana se inspirou em uma estratégia de uma ONG brasileira na aproximação de populações em áreas rurais e indígenas. "Vi o exemplo de misturar arte com informação do Projeto Saúde e Alegria na Amazônia e trouxemos essa dimensão do embelezamento. Na chegada ou na inauguração, fazemos encenações. Isso ilumina tudo, abre um espaço de diálogo muito sensível e lindo. Poucas coisas conseguem criar essa aproximação como o teatro nessas comunidades muito isoladas. Essa energia criativa amplia o engajamento nos projetos e fica uma lembrança que deixa um sabor na boca. Humanizar essas tecnologias desperta o coração das pessoas", argumenta.