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Rodrigo Ratier

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por que há pessoas que rezam por Daniel Silveira?

5.fev.2019 - O deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ), preso em 16/02/2021 após ataques a ministros do STF - Dida Sampaio/Estadão Conteúdo
5.fev.2019 - O deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ), preso em 16/02/2021 após ataques a ministros do STF Imagem: Dida Sampaio/Estadão Conteúdo

Rodrigo Ratier

19/02/2021 12h53

Na coleção de fatos bizarros ligados à detenção do deputado golpista Daniel Silveira (PSL-RJ), um teve menos repercussão do que deveria. Na quarta-feira (17), um grupo de fãs se reuniu em frente à sede da Polícia Federal no Rio de Janeiro para prestar solidariedade ao parlamentar. Entre xingamentos a alvos variados e um mata-leão no homem de muletas que carregava uma placa com o nome de Marielle Franco, os cidadãos de bem, fervorosos apoiadores do PM reformado — que se orgulha de ter sido preso mais de 90 vezes —, encontraram tempo para uma oração.

Ajoelhados, trajando ou segurando a bandeira do Brasil, rogaram aos céus por solidariedade ao parlamentar que, num de seus habituais vídeos confusos e chulos, cometeu extraordinária quantidade de crimes contra a honra e, possivelmente, incorreu em incitação, ameaçando ministros do STF e defendendo a ditadura. O flagrante de fé foi registrado pela fotógrafa Aline Massuca, do Portal Metrópoles.

Era um grupo minguado. Mas, ainda assim, vale a pergunta: o que leva pessoas a rezarem por um sujeito como Silveira? Lançar mão de lugares comuns como "burrice", "hipocrisia", "maldade" traz sensação de superioridade moral, mas encerra a discussão sem explicar grande coisa. Acerta Leonardo Sakamoto quando fala sobre a prevalência da forma sobre o conteúdo. O jeitão boca-suja, violento e tosco do parlamentar visa construir o efeito de autenticidade. "Os apoiadores avaliam que Silveira é honesto por 'falar o que pensa', corajoso por 'dizer umas verdades para os poderosos' e necessário por 'passar por cima dos direitos humanos e do politicamente correto'", como escreve o jornalista.

Concordo — e acho que há mais. Toda vez que vejo manifestações do tipo "oração para um fascista", me vêm à cabeça um tuíte de Leonardo Rodrigues de Jesus. É o popular Léo Índio, sobrinho de Jair Bolsonaro e ex-assessor do senador Chico Rodrigues, aquele flagrado pela PF com um maço de dinheiro entre as nádegas. Atualmente agraciado com um cargo na Primeira Secretaria do Senado, Léo Índio escreveu o seguinte em 24 de abril de 2020:

Um pouco de contexto para os esquecidos: Em coletiva daquela na manhã de abril, o então Ministro da Justiça Sergio Moro saiu atirando. A queixa principal era de interferência política de Bolsonaro na Polícia Federal. Diante do divórcio com o lavajatismo, que ameaçava sangrar de morte seu governo, o presidente prometeu responder - o tal "pronunciamento à nação" aludido por Léo Índio.

A fala do ex-capitão, como se sabe, veio desconexa, agressiva, exagerada, mentirosa e vulgar. Bolsonaro aproveitou a ocasião para passar à história como primeiro presidente a usar o verbo "escrotizar" em cadeia nacional. Poderia ter dito o que fosse: pela filosofia de Léo Índio, seria indiferente. "Confie e permaneça ao lado dele". Se é o presidente ou se é referendado por ele, está certo. Se é um inimigo apontado pelo presidente, está errado.

Parece irracional — e é. O carisma é um tipo de dominação que escapa à consciência crítica. A história se movimenta nas tensões entre racionalismo e irracionalismo. O entendimento dessa dinâmica ajuda a explicar correntes sociais que aparecem de tempos em tempos — sobretudo em contexto de crise —, chocando por sua forma abrupta e desprovida de justificação racional.

O carisma depende da crença dos apoiadores em supostas qualidades extraordinárias da liderança. Opera-se, então, a associação entre líder e povo: um ataque aos comandantes é lido pelos seguidores como um ataque a si próprios, à população como um todo, à nação. A confusão é tamanha que paradoxos são inevitáveis. Invoca-se a liberdade de expressão para lutar por sua extinção, como notou o genial perfil satírico Coronel Siqueira:

O mundo é binário e dividido entre os que "estão conosco" e os que "estão contra". Transforma-se adversários em inimigos: opositores democráticos são tratados como ameaças que precisam ser eliminadas, como sugere Silveira no vídeo que o levou à cadeia ("Esquerdista para mim é tudo filho da puta, então não represento esses vagabundos, não.")

Como escreve o sociólogo italiano Maurizio Bach, a relação de carisma se aproxima da vivência da fé. Sendo o líder encarado como pessoa de dons extraordinários, sua própria existência é a garantia da realização de promessas. A contrapartida é "uma obediência incondicional de seus seguidores e discípulos", afirma Bach.

O equívoco de apoiadores como Silveira e outros já deixados pelo caminho (Sara Winter, Abraham Weintraub, Roberto Alvim) é o achar que 1-) o irracionalismo dura para sempre (não dura: a história é dinâmica) e 2-) o carisma se transmite por osmose. O limitado séquito de fiéis do deputado golpista e o eloquente silêncio de Bolsonaro sobre o caso em sua live semanal são evidências de casos em que não há Pai Nosso que baste.