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Rodrigo Ratier

Na encruzilhada, EUA decidem entre atalho do fim e cura dolorosa

02/11/2020 04h00

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Joe Biden não é o candidato dos sonhos de ninguém. É político há quase cinco décadas, esteve no poder até bem pouco tempo, é fraco de TV e de discurso, não representa renovação racial, de classe, de gênero. No entanto, jornais como USA Today, New York Times, Washington Post e a revista britânica The Economist declararam apoio ao democrata. Quem não embarca no papinho de "mídia golpista" há de concordar que publicações ideologicamente tão distintas entre si se manifestem em uníssono (uma raridade) a favor de um candidato algo sem sal (mais raro ainda) é uma mostra do fosso em que os Estados Unidos se meteram. Não apenas por lá mas em outras paragens do mundo, a eleição de Biden tem sido saudada como uma questão de vida ou morte, como a opção entre tomar um atalho para o fim ou começar um processo de cura social.

A palavra cura (healing) tem aparecido com frequência nos discursos de Biden. Remete ao contexto médico e insinua doença. Parece ser mesmo o caso. A sensação de que parte significativa da população, e não apenas trumpistas se encontra numa espécie de delírio coletivo pouco tem de esotérico. Já aconteceu em outros momentos da história e é compatível com o contexto atual, o da ascensão do tecnopopulismo de direita.

A base do processo é a chamada oposição amigo X inimigo. Inimigo é diferente de adversário: este você vence, aquele você elimina. Insira esse binarismo violento numa arena que valoriza e impulsiona a lógica espetacular do confronto. Alguém pensou em redes sociais? Então. Acrescente teorias da conspiração, fake news, desinformação. Está temperado o "delírio coletivo": grandes massas capturadas pela cultura de ódio e do medo, tomando atitudes e reagindo na vida prática, em grande medida, instrumentalizada por esses estímulos.

Não é preciso ir longe. Pode-se recorrer a uma versão tropicalizada do trumpismo. Se estiver psicologicamente bem, digite no google a seguinte expressão: chat.whatsapp.com + bolsonaro. O mecanismo de busca vai fornecer links para grupos de apoio ao presidente no Zap.

O teste é permanecer por pelo menos um dia nesses grupos e, ao final do período, fazer uma reflexão sobre seu estado mental.

Muito provavelmente, a avalanche de conteúdo persecutório, independentemente de ser falso ou não, vai te deixar em estado de alerta constante. Imagine esse efeito multiplicado incontáveis vezes para os heavy users desse tipo de conteúdo. Fabrica-se uma concepção do mundo como um lugar em que se está em risco iminente - de perder o emprego, a família, os valores. Estimula-se a desconfiança de que o mal esteja ao lado, na forma de um vizinho apenas ligeiramente diferente de nós.

Essa "pedagogia da ameaça" não foi inventada pelos tecnopopulistas de direita nem é exclusividade deles. Mas foram líderes como Trump, Orbán, Erdogan, Duterte e Bolsonaro que a levaram ao paroxismo, a ponto de — retomando o início do texto — tornar a eleição de um average guy questão de vida ou morte para boa parte do mundo. Os EUA de hoje são uma sociedade dividida, com baixa capacidade de construir consensos. Diversos países do mundo, Brasil incluído, enveredam pelo mesmo caminho.

A "cura" passa necessariamente pela reconstrução de entendimentos comuns sobre o convívio social. É um entendimento clássico que, durante um conflito, a primeira vítima é comunicação. Ambos os lados deixam de se falar e passam a estruturar histórias próprias, não raro tendo o outro lado como… inimigo. A existência de narrativas em comum para toda a sociedade é um requisito para a vida em grupo. A existência de incontáveis verdades paralelas é o caminho para a atomização.

Para que todos voltem a contar a mesma historia, o caminho é doloroso como a reconciliação de um pós-guerra. É preciso ter os lados em disputa falando e ouvindo. É preciso valorizar uma outra forma de debate que não seja o "vencer a discussão". É preciso repensar completamente arenas que trabalham a valorização da polêmica, do confronto, do cancelamento e da lacracao.

Às vezes serão coisas duras que impedirão a continuidade do diálogo. Noutras, algum acordo se atingirá. E a cicatrização do tecido social poderá começar. Na eleição de amanhã, só há um lado minimamente disposto a percorrer esse acidentado e necessário caminho.