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Rodrigo Ratier

O ano em que odiei e amei ser pai

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Imagem: Reprodução

09/08/2020 00h04

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O meme é conhecido. Um Mel Gibson pleno e alinhado é o amigo solteiro e sem filhos que vem se queixar a um pai — um Jesus estropiado e encharcado em sangue — da dureza da quarentena. Há evidente exagero cômico: a paternidade em isolamento social não é bem um calvário... mas é um pouco. Longe de mim fazer competição de misérias nesse 2020 ruim para todos e tenebroso para muitos. E é verdade que criança em casa é sempre um motivo para acordar (eu colocaria um ponto final aqui, mas vou continuar a frase) feliz toda manhã. Também é razão para desespero moderado. Quarentena, dia um milhão e dois. O que inventar pelas próximas 16 horas com duas meninas cheias de energia para gastar?

O fracasso é retumbante. O vastíssimo cardápio de atividades, da gastronomia à bricolagem, dura exatos 18 minutos. São 8h52 e as aulas começam apenas às duas da tarde. Não que representem alívio, mas pelo menos a casa fica mais animada, com lápis arremessados ao ar, folhas rasgadas e gritos de "não consigo, não quero". As refeições são oportunidades para desenvolver hábitos alimentares extravagantes. Minha filha mais nova, 2 anos, se afeiçoou à água com gás e a um molho de mostarda e mel de minha lavra. Sou demandado como um garçom escrutinado pelo Michelin, de modo que acabo comendo em pé. A esperança é o sono da tarde, ao qual sonho me juntar. Quanto ao trabalho, a noite é uma criança. Espero que menos birrenta do que as minhas.

Conforme a função de pai engorda, outros papéis vão murchando. Trabalha-se nas brechas de tempo - e como denunciar a relação abusiva com o WhatsApp corporativo se nós mesmos mandamos mensagens à uma da manhã? No revezamento de turnos, eventualmente me lembro de ter uma esposa. Nosso próximo encontro será na terapia de casal onde escutarei um pout-pourri de queixas, várias delas bem fundamentadas, sobre machismo estrutural e divisão de tarefas. Guardo em algum escaninho pouco acessado na memória uma vaga lembrança sobre vida pessoal. Parece que se trata de um filme que eu mesmo escolho, uma partida de futebol... Enfim, devaneios. Na TV da sala, a Patrulha Canina não pode esperar.

"Quem mandou ter filhos?" é provocação que não vai além do estereótipo. Há uma falsa visão de que ser pai significa abrir mão de todos as outras ocupações e abraçar exclusivamente a nobilíssima missão de integrar um ou mais seres humanos ao mundo. Nada mais irreal. Com a quarentena, aprendemos que uma jornada de oito horas trabalhando fora de casa equivale a uma semana no spa. Não é por falta de amor aos filhos, mas pela ausência do que o isolamento social nos roubou, nossos outros "eus": companheiro de alguém, trabalhador em alguma coisa, nós mesmos, com nossos gostos e manias.

Volto à imprudência de comparar desgraças para descrever a imagem que temos dos solteiros sem filhos: pessoas no idílio de livros e séries, culinária refinada e vinhos. Sei que é outra miragem. Se do lado de cá vivenciamos a exaustão e apagamento da vida pessoal, do lado de lá pode haver angústia, tristeza, solidão. Aqui e acolá, muito aprendizado. Quase cinco meses enfurnado num apartamento me levaram a entender melhor as minhas filhas e meu papel nesta família. Junto com o cansaço e o tédio vem a esperança de, talvez, tomara, de repente, quem sabe, estar me tornando um pai melhor do que quando tudo isso começou.

Também há alegrias, e suspeito que nisso, nós, os pais, levamos vantagens. A memória tem uma certa tendência a deletar as cotidianidades desinteressantes e a se fixar nos momentos extraordinários. E com filhos há tantos instantes sublimes, todo dia. Desajeitados, vamos tocando em frente, aprendendo a lidar com a dor e a incerteza, às vezes felizes e em paz.