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Marina Mathey

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Inclusão é caridade. É necessário restituição!

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Imagem: iStock

06/04/2022 06h00

Muito se tem falado nos últimos anos sobre "inclusão", essa palavra com aparência tão empática e que em determinados contextos cria a sensação de que finalmente estamos podendo assistir a uma mudança de pensamentos e atitudes e caminhando em direção a uma sociedade mais igualitária e justa. Porém, partindo do pressuposto de que precisa-se da pobreza para existir a riqueza, para haver inclusão é preciso exclusão, então será mesmo esta a melhor perspectiva a ser adotada?

É nítido que a palavra muda seu impacto e seu intuito quando aplicada em variadas situações e por diferentes pessoas, porém o discurso inclusivo que vem se construindo quase sempre se refere a uma mesma ideia. Classes sociais mais altas, pessoas que habitam espaços de poder - em suma brancas e cisgêneras, dada a lógica da nossa sociedade colonial - vêm se utilizando deste discurso para, aparentemente, promover uma mudança estrutural, revendo os processos exclusores para com determinadas populações. Vagas destinadas especificamente para pessoas pretas, indígenas e/ou trans nas empresas, cotas em festivais de música, personagens em filmes e séries... acompanhamos este processo e devemos sim reconhecer seus efeitos positivos.

Populações que, como a de pessoas trans, viviam até então em quase total anonimato, vítimas de um genocídio constante e que encontravam seu sustento apenas nas ruas, na prostituição, hoje começam a habitar a passos curtos os mais diversos contextos. De fato, algumas coisas estão mudando, mas não podemos nos deixar iludir sobre como e em qual dimensão estas mudanças se revelam estruturais ou apenas uma "nova" forma de manter o jogo como estava, somente com as peças um pouco mexidas de lugar.

Em matéria para a Folha no dia 31 de março, Emerson Vicente escreveu sobre Maria Helena de Moura Neves, docente da UNESP que declarou sua opinião sobre a linguagem neutra, proposta atualmente pela população transvestigênere. Em sua declaração ela diz ser mais adequado o uso do termo "linguagem inclusiva" e, mesmo reconhecendo a importância destas mudanças, não acredita ser algo significativo a ponto de conseguir transformar a nossa língua, pois isto demandaria um "uso natural da língua por uma comunidade" - leia a matéria completa.

Moura Neves, uma mulher de 91 anos, branca e cisgênera, possui grande conhecimento das estruturas linguísticas, porém não percebe - pelo que podemos reconhecer em sua colocação - seu próprio lugar de fala perante a tal mudança. A linguagem neutra, além de ser um uso cada vez mais naturalizado por uma comunidade - a transvestigênere - vem transbordando para outros contextos exatamente para o reconhecimento e valorização das identidades não binárias na nossa sociedade e para a destituição dos pronomes masculinos enquanto generalizadores na comunicação - quando dizemos "todes" ao invés de "todos" para se referir a um coletivo plural se trata de ambas as coisas.

Poderíamos até reconhecer este movimento como algo "inclusivo", porém precisamos nos atentar às diferenças propositivas e conceituais que as duas palavras provocam. A ideia de inclusão é proveniente da hegemonia, ela carrega o pressuposto assistencialista de colocar em territórios - sejam eles físicos ou subjetivos - corpos e vivências que antes ali não habitavam. Se levarmos em consideração que todos os espaços, cargos e contextos são por direito de toda e qualquer pessoa, seja ela quem for, e reconhecermos que os espaços de poder - estes que se tornaram com os processos coloniais embranquecidos e cisgenerificados - também deveriam estar para nós, pessoas ditas dissidentes, tanto quanto para estes que hoje os controlam, a discussão passa a ser sobre restituição, sobre a retomada destas posições sociais que nos foram tiradas, e não sobre a "inclusão" em algo que - aparentemente - não nos pertence. É uma mudança simples no falar, porém na prática demanda atitudes e olhares totalmente distintos.

Precisamos nos atentar também à violência de quando uma pessoa branca e cisgênera como Maria Helena traz tal posicionamento. Ela não pertence à proposição desta linguagem, ela não possui - mesmo sendo linguista - legitimidade para decidir qual o melhor termo para defini-la. Esta atitude é a mesma que a cisgeneridade branca utilizou e utiliza para racializar e generificar corpas diferentes das suas. Este processo, em sua matriz racista e transfóbica, é exatamente o que a linguagem neutra e os processos de luta por mudanças estruturais propostos pelas populações não-brancas e transvestigênere estão combatendo.

Não podemos nos deixar seduzir pela condescendência da hegemonia ao tentar nos "incluir" em seus contextos. Nosso intuito não é de apenas habitar onde a hegemonia habita, possuir o que ela possui, mas transformar e reorganizar a forma que as estruturas sociais funcionam. A lógica capitalista exclusora é em sua matriz racista e transfóbica. Ela, ao invés de possuir brechas para a mudança, se apropria do "novo" para transformar em capital, em potencial de lucro, e é exatamente por isso que estas populações marginalizadas não podem ser "incluídas", pois isso resultaria - e resulta - na cooptação de suas identidades para o mantenimento da lógica opressiva.

"A transição é coletiva" - já diria o jargão da ONG Casa Chama, criada e gerida por e para pessoas trans. Quando adentramos determinados contextos, esses mesmos necessitam transicionar conosco, mudar sua forma de pensar e agir, caso contrário continuarão violentos e facilmente nos empurrarão para fora rapidamente. A inclusão repele o corpo contra-hegemônico, e o que nós estamos construindo são fórmulas para diluir e dissipar este repelente.

Enquanto pessoas trans, pretas e indígenas não ocuparem espaços como o da professora Maria Helena, continuaremos sendo apagades por essa estrutura. Não desqualifico sua compreensão e pesquisa perante as construções linguísticas, porém é necessário compreender até onde vai sua capacidade de atuação e que, em casos como este, somente nós podemos dizer o quanto é importante determinado nome, ou não, para esta luta. A branquitude cisgênera não está apta para dizer e propor sobre tudo, diria inclusive que muito do que ela pensa estar apta é por pura condecoração acadêmica ou aquisitiva, e, enquanto não reconhecerem e respeitarem seus próprios limites, continuarão perpetuando a violência enquanto acreditam profundamente estar fazendo caridade, ou seja, se vendo ainda como o "normal" perante todas as outras pessoas que diferem.

Restituir é o caminho! Reelaborar lógicas relacionais da nossa sociedade para que não permaneçamos na falsa ideia de melhora. Valorizar as culturas trans, as culturas não-brancas, apagadas e marginalizadas por tantos anos. Se não for por este caminho tudo que veremos será mais do que já estamos mal-acostumados a viver. Para que a violência acabe é preciso acabar com a violência - uma frase redundante, mas que não parece estar tão óbvia assim.