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Marina Mathey

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

MJ Rodriguez nos faz avançar... o Globo de Ouro faz apenas o mínimo

MJ Rodriguez, estrela de "Pose" - Getty Images
MJ Rodriguez, estrela de "Pose" Imagem: Getty Images

12/01/2022 06h00

Neste último domingo (09/01) veio a público a lista de vencedores do Globo de Ouro 2022. A premiação vem sofrendo boicotes e denúncias há alguns anos por indícios de corrupção e posturas estruturalmente racistas, dado que os integrantes da HFPA (Associação da Imprensa Estrangeira de Hollywood), no caso votantes do prêmio, são todos brancos. Porém esse ano, mesmo com os resultados tendo sido divulgados sem cerimônias, seja por proteção contra a covid-19 ou contra os protestos que possivelmente ocorreriam, tivemos uma novidade: a atriz MJ Rodriguez foi vencedora do prêmio de melhor atriz em série de drama, abrindo caminhos para a comunidade trans no audiovisual.

Após três temporadas da série "POSE" — sucesso internacional e pioneira na quantidade de protagonistas trans racializadas — MJ Rodriguez foi escolhida pela comissão para concorrer e, consecutivamente, receber o prêmio. Desde o lançamento da primeira temporada da série, inúmeras denúncias e manifestações foram feitas por artistas trans — inclusive atrizes da série — sobre as premiações ignorarem totalmente esse elenco transvestigênere. Em 2019 o ator Billy Porter recebeu o Emmy de melhor ator em série dramática por seu papel na série. Ele, primeiro homem assumidamente gay a ganhar tal prêmio, uma bixa preta retinta, foi motivo de comemoração, porém sua indicação e vitória também reforçaram a questão: por que as travestis continuavam sendo ignoradas?

"Há algo estranho sobre pessoas trans não serem honradas em uma série sobre pessoas trans que criaram toda uma cultura para honrar a si mesmas, porque o mundo não era capaz de fazer o mesmo"

Indya Moore, atriz, em suas redes sociais sobre o apagamento das pessoas trans no Emmy em 2019

É evidente como essas premiações foram criadas por e para pessoas brancas e cisgêneras. Historicamente podemos acompanhá-las de forma a estudar como a hegemonia cria mecanismos para se manter no poder e valorizar seus próprios trabalhos, em detrimento do apagamento de quem não pertence a ela. Porém, essa história pouco a pouco vem se transformando. Movimentos sociais e artistas vêm se posicionando em seus discursos, boicotando os eventos, devolvendo ou recusando seus prêmios, e isso vem surtindo efeito, desvelando o racismo e a transfobia que já eram escancarados, porém naturalizados dentro destes contextos.

A premiação de MJ, uma atriz trans jovem com ascendência negra e latina, é um marco histórico. Quando ela ganha todas nós ganhamos, pois isso afirma o início de uma nova etapa e nos deixa a pergunta que Renata Carvalho tanto insiste em repetir: "Quem será a próxima?". É uma indicação e uma vitória tardia, atrasada — como toda e qualquer reparação histórica que deva ser realizada —, porém merece ser valorizada.

MJ Rodriguez deve ser valorizada! Atrizes e atores trans devem ser valorizades! A decisão da HFPA não passa de um feito mínimo em relação ao apagamento histórico que pessoas trans e/ou racializadas sofreram e sofrem na indústria audiovisual. Como bem disse a artista e colunista Ágatha Pauer em uma publicação sobre o assunto em suas redes sociais, "Ser a primeira atriz trans a ganhar o Globo de Ouro não é apenas sobre comemoração, é sobretudo uma denúncia a esse cistema transfóbico".

Denúncia porque enquanto continuarmos singularizadas nestes espaços continuaremos servindo de remédio para a hegemonia, apaziguando sua culpa em relação a essa dívida histórica. Precisamos continuar avançando, coletivamente, para que MJ seja a primeira de muitas pessoas trans a receberem prêmios e a protagonizar filmes e séries como "POSE".

Quando uma travesti/mulher trans é premiada como melhor atriz ela não só é legitimada em seu trabalho artístico, mas também em seu gênero! Reconhecer MJ como atriz é reconhecer mulheres trans enquanto mulheres, algo que ainda vemos a própria indústria cinematográfica paradoxalmente refutar. É 2022 e o Globo de Ouro está "começando" a não ter como fugir de seu histórico racista e transfóbico. No Brasil, em 2017, tivemos o lançamento do "Manifesto Representatividade Trans Já" (MONART) e hoje vemos o quanto avançamos no combate à prática do transfake, na contratação de artistas trans nas artes cênicas, e sabemos o caminho longo que temos pela frente.

Renatas, MJs, Marinas, Lavernes estão por toda parte e a se multiplicar. Nos resta persistir na luta, abrir mais e mais caminhos e continuar o trabalho que nossas transcestrais começaram. O mundo só se transformará com o avanço das transgeneridades — isso é uma constatação, não uma suposição — e ao passo que pessoas negras, indígenas, trans, pobres, mulheres em geral estão reconhecendo e alimentando suas lutas vamos percebendo que a minoria não é e nunca fomos nós e que, no final das contas, todo esse processo não passa de uma luta árdua e cansativa por restituição de tudo aquilo que nos é de direito.