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Marina Mathey

REPORTAGEM

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Casa Chama realiza festival cultural focado em narrativas transmasculinas

Arte Gráfica por Auá Mendes a partir de pinturas do artista Marcos Vinícius - Divulgação
Arte Gráfica por Auá Mendes a partir de pinturas do artista Marcos Vinícius Imagem: Divulgação

21/04/2021 06h00

A Casa Chama, ONG focada em ações socioculturais relacionadas à população transvestigênere, realizará nos próximos dias 25, 26, 27 e 28 de abril um festival com foco nas narrativas transmasculinas e não-binárias em seu canal do YouTube. Com uma programação composta por oficinas, talks e shows de artistas de todo o país e também internacionais.

A Associação nasceu em novembro de 2018, idealizada e fundada por Digg Franco com apoio da artista Cinthia Marcelle, com o intuito de criar ferramentas e mecanismos para fomentar a saúde, cultura, dignidade e autonomia da população trans na cidade de São Paulo. Desde então vem realizando seu trabalho em diversas frentes.

Em sua atuação jurídica, coordenada por Fernando Zanella - advogado presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB/SP Lapa - somente em 2020 foram abertos cerca de setenta processos judiciais com denúncias de transfobia e racismo e, desde o início das atividades da ONG, já foram realizadas cerca de vinte e cinco retificações de nome e gênero de pessoas assistidas pela Casa. Em 2019 o STF decretou que crimes de discriminação às pessoas LGBTQIA+ seriam enquadrados na Lei Nº 7.716/1989, porém há de se compreender que denúncias como essas não dependem apenas da existência da lei, mas de sua aplicação devida e de uma conscientização dos profissionais envolvidos no seu processo de reconhecimento e aplicação, para que o momento de uma denúncia não se torne mais uma incidência de discriminação, que é o que acontece na maioria das vezes. A relativização e/ou invalidação das narrativas das vítimas de LGBTfobia e racismo é constante, fato que o índice de discriminação e violência para com essa população no nosso país é altíssimo, portanto, o trabalho é ainda maior para que casos como esses sejam levados adiante com seriedade. A equipe da Casa também trabalha atualmente na articulação para a conquista da gratuidade total no processo de retificação de nome e gênero, dado que a população trans é extremamente vulnerabilizada e carece de recursos para realizá-las. Também devemos levar em consideração que esse direito, correspondente à nossa identidade, nos foi negado por muitos anos, o que deve ser encarado como uma reparação histórica por parte do Estado, realizando então as retificações gratuitamente.

A frente jurídica, como todas as frentes de atuação da ONG paulistana, conta com pessoas cisgênero aliadas em parceria com pessoas trans, e eis aí um diferencial da Casa. A Casa Chama não apenas atua para a população trans, como também é gerida e organizada por essa população, tendo-a como protagonista das decisões e escolhas dos caminhos a serem percorridos. Atualmente a ONG é presidida por Digg Franco - homem trans, branco, articulador político-cultural e empreendedor - e Matuzza - travesti, preta, responsável pelo psicossocial da ONG e redutora de danos tanto pela Casa Chama quanto pelo Centro de Convivência É de Lei - e atende em média 300 pessoas trans de forma remota. Durante a pandemia a Casa Chama realizou a entrega de cestas dignas - que correspondiam à uma compra completa de mercado - para as pessoas assistidas pela ONG não só em São Paulo, como também arcou com auxílio-aluguel para essa população, levando em consideração que a crise sanitária tornou ainda mais miserável a condição de sobrevivência da mesma. Essas ações foram possíveis em sua maioria a partir de contribuições da sociedade civil e empresas aliadas que doaram quantias significativas para o financiamento coletivo da Casa.

A Associação também vem realizando um trabalho muito importante junto ao Centro de Saúde Escola Barra Funda, onde, em parceria com o Dr. Rodolfo Galeazzi, estão desenvolvendo um trabalho de amplo atendimento à população trans não apenas para a terapia hormonal, mas para os cuidados médicos em geral. Esse trabalho teve início em parceria com o Dr. Alexandre Sizilio, médico aliado da Santa Casa e professor no Hospital Israelita Albert Einstein, em 2018, após uma assistida da ONG ter tido muita dificuldade de ser atendida em um hospital da rede pública, sofrendo discriminação dos profissionais do local. A partir do ocorrido e com o acolhimento do Dr. Alexandre Sizilio se iniciou um diálogo sobre a realidade da população trans e a dificuldade dessas pessoas acessarem com dignidade e respeito o atendimento médico, seja ele público ou privado. Atualmente o trabalho segue acontecendo no Centro de Saúde Escola Barra Funda, contando com o treinamento de estudantes residentes para melhor atender à população transvestigênere e resultando num acesso mais digno para cerca de duzentas pessoas por mês.

Em se tratando de cultura, em 2019 a Casa Chama realizou seu primeiro "Chama Festival - Trans/versalidades", no Teatro Oficina em São Paulo, reunindo diversos e diversas artistas trans e cis-aliades, gerando renda e emprego para essa população, que compôs cerca de 90% das contratações, sendo elas referentes tanto às/aos artistas convidades como também em todas as instâncias para a realização do evento. Agora, em 2021, pudemos assistir à retransmissão desse evento em março, dando início às ações culturais que a ONG realizará no primeiro semestre do ano, que contarão com mais duas edições do Chama Festival.

No intuito de focar em narrativas transmasculinas e não-binárias surge o primeiro Chama Festival em Ação, realizado com apoio da Lei Aldir Blanc, a partir do dia 25/04. A população transmasculina é vítima de um constante apagamento mesmo dentro das discussões sobre transgeneridade. Vítimas da misoginia, assim como de uma pressão social para que não correspondam à uma masculinidade cisgênero tóxica e opressiva, as pessoas transmasculinas se veem sem muito espaço de fala e atuação, ao mesmo tempo que carregam diversos estigmas transfóbicos por parte da sociedade em geral, dificultando a autonomia e liberdade na construção de suas identidades legítimas. Portanto, para criar um espaço seguro e atento para o encontro dessa população, para a apresentação de suas artes, saberes e discussão de suas pautas atuais a Casa Chama resolveu realizar o Chama Festival em Ação.

Com a curadoria de Digg Franco e Matuzza e coordenação da artista Leona Jhovs, o festival acontece no YouTube da Casa Chama nos dias 25, 26, 27 e 28 de abril e tem como protagonismo os corpos transmasculinos, agêneres e não-bináries. A programação está repleta de shows, com a participação confirmada dos artistas Flor de Mururé, Borblue, All Ice, Caio Transpoesia, Jackie Jean, Dan Abranches, Mascucetas, Kaique Theodoro, Seu Verciah, Rap Plus Size, Tiely, Julian e EME. Também, um solo teatral de Guttervil, artista agênero que aborda e provoca a pensar também nas corpas não-binárias, além de oficinas, apresentadas por Atê Ilê, Quitutes Autênticos e Fudidas Silk; e talks, com debates apresentados por Digg Franco, Léo Barbosa, Léo Peçanha, Bruno Santana, Léo Moreira e Aoi Berriel que abordarão temas importantes como aspectos jurídicos de direitos de homens trans, educação física escolar e transgeneridades e corpos NB's na sigla LGBTQIA+.

No dia de abertura, 25 de abril, acontecerá também o EnconTrans, mediado pelo jornalista Caê Vasconcelos, e reunirá todos os artistas da programação.

Conheçam a Casa Chama, acompanhem o festival e as redes sociais da ONG, pois ações como essa só são possíveis com o fortalecimento e envolvimento da população em geral, tanto para seu apoio quanto para levarmos essas discussões e perspectivas para o maior número de pessoas possível. Apesar das dificuldades seguimos em articulação, criando espaços para nossas pluralidades na sociedade. Seguimos lutando por um mundo mais justo e digno!

*Para colaborar financeiramente com a Casa Chama use a Chave Pix casachama440@gmail.com