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Café com Dona Jacira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

E para o resto da vida

Victor Balde
Imagem: Victor Balde

Colunista do UOL

21/08/2022 06h00

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- Vá, segue sem medo, eu estarei com você!
- Mas não pode falar deste jeito senhora, tem que ser de outro jeito.
- Ai de você se me fizer vergonha, eu estarei ali de qualquer jeito.

Vixi! ficou forte como: "Vou cuspir no chão".

Cada pessoa tem frases como esta gravada na tábua de suas memórias, vindas de vários processos reais que reverberam e retornam para um mesmo lugar lá dentro da gente. Nunca imaginei que sentiria saudade deste tempo e hoje preciso secar as lágrimas e sentir o quanto foi intenso. Tiro os óculos, desembaço o argumento... O crescimento exige esforço e entendimento, sigo o raciocínio de outras histórias que provocam meu pensamento, não ando sozinho, o futuro é ancestral, tem bem pouca coisa pra inventar.

Todo ano era a mesma coisa, ela chegava e espalhava seu bordado pelo sofá da casa. Pronto, estava a Dona Emereciana instalada. Eu, sua enfiadora de linha oficial, agora tinha serviço, dizem que o certo seria a gente visitá-la, não sei dizer, só sei que foi assim. Pensando idas e vindas, vou pôr aqui uma história de rodapé. Era sempre assim...

Chegava as férias, ele viajava em companhia dos pais, passava as férias na casa dos avós. Houve um tempo que ele já crescido começa sentir incômodo de todo lugar que vai ser necessário a presença dos pais, esta preocupação sempre tem, quem tem pai e mãe. Após assembleia familiar, ficou decidido que naquele ano ele faria a viagem só, na hora de embarcar, mediante recomendações gritadas pela janela do trem em movimento o pai entrega um bilhete ao filho para lhe fazer companhia, caso ele se sentisse só. A viagem seguia, o trem lotado como sempre, aquele empurra-empurra, ele mal podia respirar ali apertado entre os joelhos de tanta gente, alguém olha pra baixo e diz:

- Viaja sozinho, não tem família?

O supervisor é avisado

- Tem aqui um rapazote que viaja sozinho, pobrezinho!

A palavra "sozinho" perdeu todo sentido de valentia de outrora, a lágrima lhe rolou pela face, e agora? O arrependimento tomou-lhe todo o espírito e toda valentia juvenil desapareceu. Quando o medo deu uma trégua ele se lembrou do bilhetinho que o pai lhe entregara, tirou do bolso e leu palavra por palavra, o bilhete dizia: "Boa viagem filho, caso sinta medo, estarei no último vagão".

Voltando ao sofá da sala, por estar sempre com bisa pra todo lado, ela assim decidiu que eu iria ser iniciada nas artes da fé, mãe ouvia e consentia:

- Toda criança tem pecado, a russinha eu vou ficar de olho, botar os olhos em cima pra não desandar. Eu e Deus tomando de conta.

Para entendimento das saias da casa, religião e água benta nunca fez mal a ninguém, nem a mim tampouco fazia. Era bom estar entre as senhoras, elas tinham sempre comida de verdade em algum compartimento da bolsa, e naquele tempo eram nômades, andavam a esmo pelas ruas aqui do bairro. Ora pregando a palavra, ora pregando botão, ora pregando no cochilo. E nesta hora eu era só o arteiro Nico mesmo, pra mim era melhor que brincar de casinha comendo folha falsa, eu sempre fui enjoada e desconfiada.

- Criança precisa comungar e confessar cedo pra expurgar os pecados do corpo.

Entre uma aventura e outra, lá estávamos ela e eu, na inauguração do metrô aqui em São Paulo, a gente estava lá. Eu achei certo ela não subir em escada rolante e elevador, girar a borboleta foi um parto, melhor que todo cristão andasse a pé.

A igreja dela era no Jardim Joamar, as saias farfalhavam num misto de marrom, bege e preto, acho que são cores que Cristo gosta. Todo dia era dia de pôr roupa nova. Ah! Antes de ir à igreja a bisa passava num bar bem ali perto da ponte pra jogar no bicho, fazer o seu pecadinho, disto ela me pedia segredo. Aos domingos eu ia cedo à missa com meu vestido rosa que eu nem gostava, eu queria ir vestida de menino, a madrinha deu aquele vestido no batizado. Choveu tanto naquele dia, tomamos banho em casa, depois tomamos chuva a caminho da igreja, depois o padre Raimundo lavou minha cabeça, por que só a minha? Aí voltamos pra casa e teve festa na casa de Umbanda de Dona Maria Preta, nossa sacerdotisa, íamos a qualquer momento vestidos com o que tivéssemos. Ah! Íamos a uma quarta igreja que era nas casas onde tinha um pastor eufórico, ali na ponte onde a bisa jogava algo acontecia.

Em fevereiro, pessoas mui ricas, coloridas, barulhentas, cheias de alegria, vestidas de roupa colorida aguardavam algo. Eram integrantes da escola de samba Camisa Verde e Branco que aguardavam o ônibus vir apanhá-los. Meu coração adotou o compasso, tomou pra si aquela alegria, meus pés chega demoravam no compasso da andada, ficavam um pouco para trás pra sentir aquela alegria, meu corpo queria mais. Eu cheguei a pedir a ela pra gente ficar ali olhando aquela alegria passando, ali tinha gente conhecida, o filho e a filha do homem que vendia quebra-queixo, o filho de Dona Antônia, entre outros. A bisa aproveitava pra fazer daquela imagem um aprendizado.

- Escute o que vou dizer, estas pessoas são todas filhas e filhos do demônio, daqui irão direto pra o inferno, e só de pensar neles quem o faz vai pra o mesmo lugar, você quer ir pra o inferno? Quer ser deixada de fora da nuvem dos homens justos? Quer ficar de fora do passeio pra buscar retalho? Acho que não.

Bisa jogava pesado, em silêncio eu desejava ir pra aquele inferno e foi ali que a jura se fez: "Quando eu crescer eu irei a casa deste demônio, gosto muito de colorido e do barulho deste ratatata". Igreja é bom pra cantar, sempre gostei, mas cada música era pra um lugar, o Gonzaga pra o rádio, o louvor pra o culto e cozinha, Nelson Gonçalves pra lavar e quarar roupa, Moisés Rocha em O Samba Pede Passagem, e pra finalizar a Ave Maria.

As mulheres aqui sempre cantaram, e a mistura se fez, assim eu fiz escola. Eu desejei ir à escola, eu queria ir a algum lugar sozinha, eu desejei e aconteceu, foi ali que a professora de arte me ensinou hinos de guerra, foi ali que por cinco anos eu lavei banheiros, foi ali que a professora achava absurdo minha escrita ter início, meio e fim , aquilo não era pra mim segundo elas.

- Não perco tempo ensinado arte a este tipo de gente.

Foi ali que entrou em mim a falta de ar, na hora de cantar, assim minha criança, meu Nico, minha russinha adoeceram. A pessoa que foi mandada pra acender meu solzinho deitou sobre ele um fel que era da vida dela. Quando saí de lá, foi já pra o psiquiatra, aquela viagem desejada a escola adoeceu meu ndotolo, Exu me deu filhos pra me fazer pensar enquanto esperava, e eu cheguei a reproduzir muitas coisas que me fez mal, a promessa silenciosa feita na ponte foi esquecida. Todas as mulheres iam sendo engolidas pelo moinho de gastar gente, eu também fui, eu desejei minha mãe, meus filhos me desejaram. Como eu odiei minha mãe por isso, como eu segui pelo mesmo caminho, isto só piorou o estado da minha criança. Vieram os calmantes consentidos, o álcool, e por muito tempo eu morri, mas em 2008 com a lei 10639, eu fui apresentada a África. Lembrei do povo da ponte, agora é preciso cumprir a promessa feita, peço licença a minha família linear, filhos, filhas e netas para fazer a passagem, isto nem é um pedido, é uma confirmação, estou só avisando. Abro o casulo que mãe me deu e registrou como Jacira para renascer Yaci Ira. Segundo a cultura Tupi Guarani, o nome que mãe me deu quer dizer filha da lua, é meu espírito coroado, meu lado iluminado, o nome de guarda é uma flecha, um segredo que só deve ser revelado quando o dono do nome sustenta o peso, porque ao informar o nome ao mundo é lançado uma flecha que não se sabe onde cairá. Jacira é escudo, e como escudo, dado por minha progenitora, a mulher escolhida por Exu pra me dar passagem, tem uma importância ímpar.

Outra questão que envolve minha vida é o dia de meu nascimento, que me causa falta de ar e desconforto e nem é por causa do aniversariante maior, e sim pela forma de como tudo foi feito. A data de nascimento é uma abertura de um grande portal que se abre só pra gente, peço que você daí, de onde você lê este pedido, me abençoe porque no momento em que você ler, eu já terei feito a passagem, e renascido como Yaci Ira, a filha da lua. Agora só falta a festa com todo mundo colorido de fita e chita, que pra mim precisa se fundar na minha casa como casa de cultura nesta região para que outras crianças, ao olharem com o olhar de medo de seus adultos, veja a possibilidade de o colorido entrar em seus corações logo cedo pelo ndotolo. Não pense que sigo cheia de coragem, tenho medo e luto contra ele, deixe-me viajar pela envelhescencia sem juízo, mas deixem algo pelo amor da minha natureza. Um sinal, um aceno, um bilhete, algo que eu possa apertar na palma da mão toda vez que o racismo me ameaçar, eu tenho certeza que vocês estarão no último vagão.