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Café com Dona Jacira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A Poesia Circula Em Mim Em Silêncio

Victor Balde
Imagem: Victor Balde

17/07/2022 06h00

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Foi no silêncio que me criaste atenção e carinho.
Foi neste mesmo encanto que me protegeste até de mim mesma.
Debaixo de tuas asas, a arte chegou a mim e acendeu-me.
E me deixaste ir ao mundo, era um desejo silencioso meu.
Eu me deixei ler o silêncio.
Foi assim aquela despedida silenciosamente cruel,
naquela manhã única e cinza.

Em tua grandeza e sabedoria, você de alguma forma sabia
que ali ficaria minha melhor parte, como grande aprendizado.
Já a despedida doeu, sem saber.
Penso que ali havia um propósito
pra eu trazer a tona depois que encontrasse o verdadeiro amor.
Será que adivinhava o lugar pra onde eu iria?
Sendo levada dali pra virar gente ou outra pessoa.

Não sei dizer o que dói mais: se foi o teu silêncio ou meu.
Porque eu só percebi que querias me dizer algo quando já não existia mais.
Nem compreender eu pude.
Você nunca deixou de existir.

Eu cresci para lida, para o mundo dos exércitos de reserva,
não para o inacessível espiritual.
A escola não foi feita para o entendimento de algo tão imenso.
Porque o mundo lá do quintal não almeja lucro, nem competitividade.
Eu fui, me machucaram e me devolveram pra casa como algo imprestável.
Nem andar e falar eu sabia mais.

As mãos das mulheres do quintal me cuidaram.
E desde aquela manhã em que furei o bloqueio das mulheres que me cuidavam,
Eu ouvi um chamado que dizia:
"Vá brincar, tu és criança ainda".
Eu senti ali que perdi algo, que eu nem sabia o que era.
Era você.

Nem me recordava mais de nossas manhãs ensolaradas,
de nossas tardes ao pôr do sol.
Do grito de mãe estragando nossa brincadeira, me chamando pra almoçar.
Eu sabia que ao retornar ali, tu terias abrigado outra parte dos meus amigos.
As galinhas vinham pra ali espalhar a terra
e poetizar a tarde ao pé de ti, jogando poeira pro alto.
Até comiam as florzinhas que choviam sobre nossas cabeças.
A poeira ia toda assentar nas roupas no quarador, entravam casa adentro.
Mãe reclamava, dizendo que haveria de podar-te,
alegando que sujava o terreiro todo.

Nem precisou matar-te, como fizeram ao abacateiro,
a goiabeira, a mexeriqueira, a mangueira e parte de mim.
Ah! Como a ausência de vocês me feriu a existência,
pois, eu nem sabia, mas era tudo o que eu tinha
para alimentar minha alma de poeta.
De sorte que tinha ainda alguma inocência.
Até aquela cobrinha verde, que vivia por ali e a gente deixava passar,
eu encontrei um dia estendida e sem vida.
Quem realmente era mau, quem é que matava e afastava tudo por engano?
Eu morri também mais uma vez, vivendo naquele pesadelo.
Me rebelei. Tive ódio, medo.
Externei ali todas as minhas fraquezas,
mesmo com ameaça de retornar ao mesmo lugar.

Eu cresci, fui à luta e tiraram minha carteira de trabalho.
Fui convidada a conhecer como se ganha a vida com suor e muito choro.
Nunca pensei que a vida pudesse me ser tão cruel.
E pra descontrair comecei a fumar e bebericar um anestésico

Aí, por caridade, saíram de mim filhos.
Filhos são flores também e eu os reguei,
podei e cuidei à minha sombra como pude .
A vida nunca me deu muito, mas me ensinou a divisão por amor.
Filhos são árvores pra vida toda,
uma vez nascido, nem a morte nos separa.
E olha que também tentaram.
Eu descobri que tudo o que eu toco, cresce e fica maior que eu.

A vida é feita de passagens, mortes e renascimentos,
certeiros e acasos.
De 7 em 7, de 9 em 9, a vida muda.
O destino conduz quando a gente aceita.
Se a gente não aceita, ele nos arrasta.
Foi o acaso que fez chegar até mim amigos de toda sorte,
uns me levaram ao álcool, já outros me trouxeram livros
que me tiraram do alcoolismo.
Eles me fizeram viajar a vários lugares, mas o meu pé de laranja-lima,
Este me levou exatamente a este período da minha infância.
Aqui se fecha o ciclo, o portal dos 7 anos
e eu entendi o que faltava no quintal naquele dia.
Faltava minha alma infantil.

Eu chorei como chora uma criança.
Era a minha criança que estava ali, dizendo que ainda vivia
agora já com 40 e tantos.
De todas as recordações que tive,
o teu cheiro resgatou todo resto
e eu lembrei daquela maldita manhã de segunda feira cinzenta .
Minha mãe carregando uma mala muito grande,
caladas íamos minha irmã e eu atrás.
Ela dizia que a gente iria pra escola.
Eu num último olhar, vi todos vocês em reverência a mim,
não entendi porque nem tinha sol, era um dia cinza .
Foi preciso crescer para entender que vocês sabiam ler o coração de gente grande.
Era uma reverência a mim, ao grande mundo que eu deixava pra trás ,
mas que me guardaria na memória e se guardaria em mim
pra que eu resgatasse vocês no tempo que eu pudesse proteger meu infante onírico.
A menina peralta de Dona Xica Mixirica.

Acho até que foi esta razão que fez com que eu fosse colocada num convento,
pra ser gente, pra virar menina.
Eu chorei por três, quatro, cinco dias.
Chorei até não ter mais o que chorar.
Aí eu sonhei com você, lembrei das tuas flores,
do perfume, da folhinha aveludada.
O nome eu não sabia nem o mês que caiam as flores brancas.
Decidi procurá- la pela cidade, pelo aspecto e pelo cheiro, encontrei.
Me apresentei, quis saber de você e qual seu nome.

Hoje, posso dizer que entre tudo o que vivi,
você foi um dos meus primeiros amores.
Trouxe um pedacinho de você pra morar comigo.
Agora, meus filhos todos já estavam de saída pra vida
e você retornou como um consolo.
Eu encontrei alguém pra me dedicar por amor.
Minha vida nem faz sentido se não for assim.

Eu segurei você com minha mão curiosa, firme e corajosa.
Você incitou em mim a vontade de plantar.
Mãos à obra, ao trabalho.
Segundo Zelita Seabra:
"As matérias terrestres como madeira, pedra, barro
e os frutos da terra, farinha, fios, palha,
estão à nossa volta e ao alcance da mão.
Lidar com elas, transformá-las, não é privilégio dos artistas.
Não é dado só a eles o poder de sentir simpatia pela matéria.
É parte da vida cotidiana, parte da experiência tão simples,
como abrir uma gaveta e pegar um objeto amado,
Como fazer ponta num lápis."

Comenta Bachelard, citando Michel Leiris:
"Tudo é fruição: o ruído de cortar, o perfume da madeira,
o ajuste da pressão da faca.
Primeiro a dureza da madeira,
depois a dureza crescente do filão de hulha.
Nada falta, nem sons nem odores."

O amor pelas coisas e pela vida invade ao mais pobres,
dos nossos minutos mesmo nas tarefas consideradas mais pobres.
Mas, foi eu que desejei em segredo.
Achava que fora do meu quintal e pra longe da barra da saia,
eu seria mais feliz e compreenderia o mundo com toda complexidade .
Eu já tinha o ego afiadíssimo,
focada em mim como boa capricorniana que sou.
Todas as crianças à minha volta embalavam sonhos comuns.
Eu queria ofício, pedia conhecimento e gritava:
Eu quero crescer pra conquistar e melhorar o mundo!

Mas, eu nem sabia que o mundo era tão grande e distante de si e de ti .
E que, pra onde quer que eu fosse,
iria precisar primeiro de proteção
e que pra isso, eu não poderia ir tão longe,
como vão aqueles desprezados que encontrei um dia .
Ir longe demais é esbarrar no mundo dos enjeitados no caminho sem volta,
um dos piores enganos da vida.

Conheci ali muita gente que tinha aquelas freiras como única família
e elas nunca poderiam sair dali antes de crescer.
Meu sonho era buscar, mas pra buscar é preciso partir,
navegar no desconhecido .
Pra longe das cantigas do rádio, dos louvores
e das canções de Nelson Gonçalves que mãe entoava.
Se já era tão bom chupar cana com tanta gente à minha volta,
Imagine então se a dificuldade acabasse.
Se menos gente morresse .
Se menos gente apanhasse .
Um mundo como padre Raimundo dizia que viria,
quando os homens de bem retornassem.
Quem diria que o que eu esperava era mentira,
que os tais homens de bem são este patriarcado,
que vive egoicamente só para si .

Eu perdi ar e chão .
Depois que li o livro, fui ler sobre o autor e já ali o encanto se desfez.
Ele não viveu o que escreveu, ele estudou pra ser aquilo.
Era um menino branco de família mediana.
Mas, foi desta história de um poeta fingido,
que eu consegui acordar pra anos atrás
porque eu vivi um sofrimento parecido e tive também um amor
como o daquele português .
A mentira daquele escritor me trouxe de volta o teu cheiro,
a tua textura e a despedida tão cruel.

Como sou teimosa e perseverante,
Eu dei um lugar à você na minha vida novamente.
Preenchi meu silêncio ou parte dele .
Descobri seu nome e o mês da inflorescência branca, e decidi:
Vou escrever tudinho num livro pra nunca mais te esquecer .
O livro "Café" está escrito, você está agora no meu quintal e dentro dele .
Eu me curei de muitas mágoas, fechando este ciclo triste.
Um dia, tomara que eu mereça tuas flores junto as minhas cinzas.