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Café com Dona Jacira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Reluziu

Victor Balde
Imagem: Victor Balde

14/11/2021 06h00

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- Mãe, todo mundo tá mangando de eu na escola, que sou mentiroso, dizendo que eu não sou filho de quem eu disse que sou. Não posso ficar por aí no mundo sem pai e sendo zuado, meu pai precisa provar que é meu pai. Ou a senhora resolve esta questão ou naquela sala eu nem piso mais, se me obrigar eu faço um desmantelo lá. Quero que vá tudo para o quinto dos infernos.

- Minino, calma, vamo te calma, nóiz o que é de teu pai se te pega assim tão revoltado desenchavido, chamando o inferno de todo lado. Hoje cê tá um pirigo! O dono do inferno é teu tio, sabia? Esta superlotação que você promete ao inferno nem procede, que lá nem vaga tem. Religiosamente pensando, pra o céu mesmo não vai ninguém. Mas se depender de mim, mangar de ti ninguém vai, eu vou, tome o endereço de teu pai pra tu ir até ele ajustar as querelas.

Tudo resolvido, com o endereço na mão é só buscar solução. Não é tão simples assim, a mãe, com fumaças de nobreza, nunca deu ao filho o nome do pai comum, achou de não querer ser simples e, desprezando a nacionalidade pra seus herdeiros, escolheu pra seu filho o maior pai do universo, o sol. Pense na grandeza infinita, no momento talvez fosse só uma birra ou um excesso de sol na moleira, algum novo golpe no governo ou no quengo. Os antigos falavam muito sobre guardar a moleira, acho que talvez fosse por isso que se inventou o chapéu. Mas como o menino gostava de ter como pai o astro rei, a mentira se solidificou e ganhou cara de verdade. Um pai assim, desta magnitude, não é um pai qualquer, então ele assim se apresenta em todo lugar que vai. O menino quer brilhar, reluziu é ouro ou lata, eternizou o poeta, e com o endereço no papel ele sai em busca da casa do pai cheio de certeza.

A inocência é a melhor época da vida, é um período de credulidade, tudo pode, tudo orna, tudo cabe. Eu, outrora amante da mitologia grega, não via outra forma de verdade que não fosse ela, eu ainda nem sabia, no meu desassossego viria a ser um caso a ser estudado. Toda vez que lembro me revejo ainda bem miudinha saindo de casa cedinho, roupa cor de rosa, sapatinho branco de verniz, meia de bolinha, espírito puro, indo ouvir o sermão do padre Raimundo e sempre pensando na volta como era bom ser amado por Deus. E, em contrapartida, eu tinha que fazer quase nada a não ser ter boas ações, ser boazinha, obedecer os mais velhos, ajudar a limpar a casa, não mentir, roubar, prevaricar, dar falso testemunho, Deus, lá do alto, tudo está vendo. Porém Deus não impedia meu coração de bater quando ouvia o toque do tambor, lá na casa de batuque de Dona Maria Preta, tampouco estava presente quando a bisa dizia preconceituosamente sobre o tambor ser do demônio. Para bisa, uma criança já nascia cheia de pecado e, mesmo que trabalhada na inocência, era pecadora. Na nuvem que ela criava dos justos onde Deus viria em pessoa vinha buscar aqueles que mereciam estar perto dele, nem ela cabia. Esta visão era medonha, eu tinha medo deste Deus, destas previsões. Na arca nuvem da minha bisa branca só iriam as primas brancas, aquelas que recebiam os biscoitos que ela escondia na mala, esta sim era a verdadeira educação que eu e muitos tiveram a da exclusão à grega, e foi com ela que tive que me virar. De sorte que Olodumarê me constituiu desconfiada, a certo ponto da minha velha vida de sete anos eu não acreditava em mais nada. Já havia saído de um convento, onde perdi a fala, o movimento das pernas e quase a vida, entrei pra segunda escola que só me apavorava, nunca vou deixar de dizer isso enquanto ele não mudar. Aí criei minhas próprias leis em silêncio, eu descobri que as palavras alheias estavam já me matando, e me vali dos muitos pecados que cometi pra entender o mundo, mas educada pelo patriarcado, eu encontrei a mitologia grega.

A mitologia é uma mentira que ajuda a entender a verdade. A ilusão é minha amiga, me conforta, e eu viajo em contos que são mentira, mas e se fosse verdade? Talvez fosse bom. Não, não era, a história era linda, mas não me contemplava, hoje relendo com a lupa da diáspora é uma saga covarde com deuses egoístas e perversos. Um Deus vaidoso de fazer nada, comendo ambrosia e bebendo néctar cheio de orgulho de si mesmo, durando além do prazo de validade. Uma mulher que põe calda num pavão e tem medo de sua idade e precisa usar a roupa de uma mais jovem para ser aceita pelo amado, e mesmo assim sofre com um ciúmes infeliz e castiga a seu bel prazer gregos e troianos. Basta dizer que ela não é jovem e bonita e pronto, tá amaldiçoada!

Deixemos os gregos pra lá que já perdi com estes tempo demais, voltemos ao meu delírio. O minino sai de casa com o endereço do pai no bolso, vai a esmo a sua procura e o encontra, quando chega lá é de tardezinha, o pai tá já se preparando pra entrar por detrás das árvores da Cantareira, aqui do lado leste, acho que pra dar uma descansada e ir brilhar noutro país. Qual não foi sua surpresa quando um pirralho o puxou pelo manto chamando papai. O sol se derreteu, naquela noite precisava dar atenção ao garoto, então resolveu emprestar os ouvidos. É preciso ouvir as crianças para saber onde lhe apertam os calos.

- Faz tempo que nunca o senhor passa lá em casa, mãe reclama, até chora, a coitada fica lá no quintal só te olhando passar, despontando de um lado e caindo pra outro, nunca dá uma passada lá pra ter um teretete mais ela. É verdade que casaste de novo com uma tal de lua? É verdade que já separaste? Mas o que me magoa é que eu preciso tá sempre me defendendo de ser seu filho, bato nos minino tudo, eles me batem, fico de castigo, brigam de novo comigo. Preciso resolver isso, caso contrário na escola nem piso mais. Vou ficar analfabeto, e vou pro inferno morar com satanás.

- Filho meu, eu fico muito triste em saber que eu sou a causa de sua tristeza, eu que no mundo só clareio e encho de beleza. Dói em mim saber que eu sou seu motivo de tristeza. Quero ajudá-lo a resolver, pra isso estou disposto a perder dias de serviço e deixar a terra sem lume, tudo pra ajudar você. Tem nem cabimento eu ajudando a terra inteira e os filhos da terra mangando de meu filho. Peça o que quiser que eu, seu pai, lhe darei pra você provar que sou teu pai para aqueles cabra safado fica verde claro de inveja.

- Eu quero dirigir.

- Peraí, não estás ainda muito jovem pra tal bravata? Pelas leis ainda leva um tempo pra até alcançar esta meta.

- Quero dirigir o teu carro pai, o carro que ilumina a terra, passar por sobre a Ataliba segurando os arreios dos cavalos do sol e mostrar o dedo do meio sem receio. Passar sobre tudo o que até hoje só me desdenhou, e mostrar a eles quem sou. Mostrar o poder que tenho sendo herdeiro do sinhô!

- Calma filho, não é assim, precisa ter paciência, eu sou teu pai, mas você não é eu.

O já arrependido sol sentiu que fez uma besteira ao dizer qualquer coisa, mas agora a promessa estava feita e o sol não desanda palavra dada, só não vai a frente se o oponente voltar atrás. O sol não recua jamais, todavia entregar nas mãos de um garoto uma tarefa tão importante como se fosse brincadeira era uma temeridade, como também o foi no passado quando entenderam tudo errado. O sol estava de cabeça quente de verdade, o filho ali já fazia planos, já se via com a armadura, o elmo, as botas e a proteção contra labaredas. E os cavalos, que são muitos… Isso só poderia dar numa coisa, merda. Um pai irresponsável que ainda não havia dado nenhuma azeitona a seu filho para ganhar fama e prestígio dá ao menino rebelde um carro para dirigir. O estrago feito está lá nas escrituras, além do desfecho onde o parente que também é um Deus que fulmina o menino com um raio pra não estragar a carroça. Por que será que me impressiona esta ausência de humanidade se ela está aí tão presente no nosso novo mundo.

Voltar e rever coisas que eu lia antes sem conhecimento de causa e agora com base na diáspora, no matriarcado das nossas lutas antimanicomiais, aprisionais e diversas, só escurecem os fatos pra mim. Já que depois de toda barbárie desta mitologia foram os descendentes destes que fundaram Roma com a falácia do deus único, chegaram à terra de meus ancestrais com sua cruz, espada e seu pênis, e nos classificaram como bárbaros. Mulheres e homens escravizados a serviço de tanto preguiçoso, precisavam manter sua juventude e beleza a todo custo para estes emproados gozarem, nunca que se ouve falar de um camponês ou fiador tecelão, cozinheiro, marceneiro, ferreiro, tudo na vida dessas beldades é mágico. E mesmo assim amanheciam sedentos de sangue e suor alheios, chegando ao absurdo de alguns deles matar e cozinhar os filhos e servir aos pais, queira ou não queira um destes assassinos ai é sim descendente de meu pai. De sorte que sou protegida pelo matriarcado, e se Ares tem sede de sangue e vive com as armas afiadas e adora empilhar corpos, Iansã cega o aço das armas de quem faz guerra por brincadeira, nenhuma guerra é necessária onde a população cuida da criança com afeto, foi isso que argonautas e outros mais descobriram espiando por cima do muro de outras formas de viver, pra que tanta riqueza se a maior diversão era beber o sangue alheio. Agora consigo entender o por quê a mitologia grega teve que ser banida, não há onde abrigar no mundo tanto desocupado, porque ele nunca anda só, estão soltos em redes sociais, bancada de governo, em tudo, ocupando com suas egrégoras sedentas de discórdia e riqueza.

A gente nunca fecha a porta direito, e sempre acaba acreditando se em um ou outro aí se alimenta de ambrosia, alimenta seus iguais, e pronto, surge aí mais um deus dando o carro do sol para o pecorrucho guiar. Dá no que? Desassossego, o lixo do luxo que reluz como a grande mentira como solução, e aí pronto, haja gente pra sofrer e morrer com mais um irresponsável solto no espaço.