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Café com Dona Jacira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Faça o que quiser

Victor Balde
Imagem: Victor Balde

10/10/2021 06h00

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- Flautim é o instrumento do capeta! Pequeno, difícil de manusear, precisa ter um conhecimento do próprio sopro para acessar uma ferramenta maldita desta.

- Sendo assim, porque um professor de música dá a uma aluna um flautim logo na primeira aula?

Isto me fez lembrar que, desde uma experiência de mãe em me trancar num convento, dei de ter episódios de claustrofobia toda vez que tenho medo, é instintivo, vem um pensamento ruim, coração acelera, o estômago encolhe, as pernas tremem e pronto, lá vou eu para o castigo no escuro junto com ele o...

Eu não entendia ainda sabendo ele que ela, ou melhor eu, era inexperiente porque houve uma entrevista prévia, porque causa me abandonou ali, só no escuro, com a arma do capeta. Eu, de mim achei que era babá, sou autodidata de berço, sempre me acho foda em tudo, e sem modéstia, sou. Até descobrir que não tem a menor importância saber tanto sem ter o reconhecimento, e a qualquer momento estarei junto ao pessoal da zeladoria servindo café, lavando banheiro, abrindo e fechando a porta, vendendo rifa pra ser princesa da primavera, colhendo moedas pra astear a bandeira, treinando o maldito hino da aeronáutica ou marinha ou exercito e jurar que sou capaz de morrer pela minha terra. Tudo isso sem o meu consentimento à véra tenho nada a dizer sobre estas funções a não ser que é tudo o que eu nunca quis ser, mas sou orgulhosa, prato cheio pras ardilharias do caminho que tirarão de mim o que quiserem com um sorriso medonho medíocre e um maldito elogio, coisas que outras pessoas não conseguiram com tanta facilidade, já tive ódio de mim por isso, quando percebo, já cai na armadilha do: Você é inteligente, limpinha, educada, tem cabelo macio e cheiroso e é negra!

Sempre fui reprovada e invejada em quase tudo, causando comentários horríveis que beiram a olho gordo, principalmente no que diz respeito à arte.

- Imagine se fosse bem nascida, hein? Tom de pele melhor.

Ouvi muitos "elogios" como este, mas agora era outro tempo, eu era grande, o racismo se reconstrói.

- Sabe fazer tudo e é preta!

Perdi totalmente a vergonha de dizer que tenho vergonha, não tive outro jeito, tive que romper esta barreira, sou atrevida e finjo coragem. Na cara e na coragem ergo o olho e encaro o inimigo, caso ele não esteja armado, no muque se preciso, ergo minha katana ao ar e sigo o resto, é fato contado e vivido. Ficar atenta às armadilhas contraditórias racistas do caminho das estruturas que nunca findam é profissão e religião, a qualquer momento alguém simpática e sorridente vai derrubar qualquer coisa e me pedir pra apanhar, dizer que se precisar do lugar onde eu estou sentada, vai me pedir pra levantar.

- Você não tem cara de quem faz escândalo.

- Não pague pra ver.

Logo que apanhei o instrumento fiz logo ouvidos de boa "aluna". Não sou aluna, já carrego vários saberes e vivências nas costas, no corpo e fora dele, vide meu currículo, se sobrevivi até aqui é porque realmente alguém me guarda e eu reconheci que tudo posso, mas nem tudo me convém. Que minha casa e meu corpo são sim minha fortaleza e que ninguém vai trazer sua egrégora pra ela sem meu consentimento, meu corpo é sagrado, meu ori guarda e preserva meu ndotolo.

Fui convidada a este mundo para adentrar as sabedorias milenares e ensinar a força do trabalho, pertenço a uma multidão matrigestora, sendo assim, posso sim vir a tocar uma flauta, já que o som me alimenta em viagens.

Soprava o buraco chamado boca do metal e o que saia era um firififi horrível, olhava o colega do lado que soprava imperturbavelmente seu metal e conseguia tirar sons que eu queria pra mim. Parava, olhava o instrumento, será que estou soprando certo? Talvez fosse o manejar dos dedos, como será que maneja o dedão, fura bolo, cata piolho pra chegar a tal sabedoria, será que é a pose de bacana que este faz ou o ar de imponência deste outro? Seria o morar perto, ter história, não ser filha de lavadeira ou de gente que cria galinhas e faz xarope, roupa, maquiagem, distância.

Um cordão de gente paralela bem encostadinha uma da outra, uma sala bonita, toda de madeira, e a vontade de tocar um instrumento, fazer sair dali o som de todos os deuses que sempre me fez viajar, sem sair do lugar. Flutuando, agora seria eu a rasgar de mim esta epifania de sons. Mas pra isso seria preciso instrução, que horas que o professor vai chegar para me ensinar a tocar como meus colegas? Olhava na carteira, o comprovante de pagamento estava lá, confirmando meu direito a atenção, sim porque caso fosse pra eu aprender sozinha não me matricularia num curso presencial, faria como Seu Tonho da Graça, meu vizinho, que aprende na raça, há 22 anos ele sopra no trompete sem sucesso, sei dos anos porque ele iniciou quando Evandro iniciou no trompete.

Evandro já arranhou meus tímpanos também, coitado, um dia roubaram o bichinho na porta da escola, ainda bem que estava sem o instrumento emprestado, só levaram lápis, caneta e apontador. Morávamos muito longe da escola, o bichin pegava quatro ônibus, saia cinco da manhã cá de casa pra chegar no horário, e o professor dele fazia com ele o mesmo que o meu fazia comigo, ensinava com desprezo. Gente que nem deve ser lembrada, a gente mora longe ou longe é a vontade das estruturas? O caso é que tem uma hora que quem guarda a gente aproveita uma brecha na parede do inimigo e abre um túnel sagrado por onde a gente passa, por isso nunca devemos deixar de tentar. Seu Tonho arranhando o instrumento me ensinou que devemos sempre procurar a escola pra desbravar o desconhecido e respeitar os ouvidos dos outros, ele me ensinou tocando sem saber.

Como eu iria tirar som de algo que nem sei como manejar? Entrar no curso já foi difícil, passei na inscrição, na entrevista, quando eu disse que não tinha instrumento passei também, tive vergonha de dizer que tinha umas daquelas flautas de osso ou plástico que comprei pras crianças, eu tive vergonha de ter, que coisa mais excludente. Fiquei aguardando contando os dias pra ver se eu seria escolhida, eu já havia sido excluída de tantos outros lugares, mas a teimosia me levava aos lugares, eu não tinha nada a não ser a voz insistente. Fiz a matrícula e aguardei o dia, horário horrível, 19 horas da noite, longe pra caramba, tinha que pegar o Cachoeira depois Jabaquara em Santana, descer próximo a Vila Mariana e andar muito, uma subida penitente pra quem vai usar o fôlego, várias vezes me perguntei porque estava fazendo aquilo comigo. Na sala não havia nenhuma pessoa negra além de mim, só gente bem morada, bem formada, conhecedora da minha cidade, críticos, pescadores e mentirosos, todos ali no mesmo lugar, se fingindo de merecedores, gente que lutou na vida e agora colhia os frutos, e eu que nunca conseguia plantar nada, o que colheria? E mesmo assim eu pulava do pensamento a parte ruim que era estar ali sendo testada. Já me via na formatura soprando e vendo meus filhos na plateia orgulhosos de mim apontando e dizendo pra o vizinho do lado:

- Olha lá minha mãe!

Isto se aquela merda funcionasse, mãe disse que não pode xingar que sofre castigo, dane-se! Deus bem sabe quem ele quer castigar a quem ele criou no mundo, e tem mais, um palavrão aqui, outro ali, me economiza a análise. Já pago a condução ou um bujão de gás, língua franca, e de mais a mais, quase todos os psicólogos que conheço são brancos, precisam fazer análise de consciência pra me entender se quiser. Incrível como estas questões sempre me levavam aquela sala de aula com a professora rasgando o que eu escrevia ou a maldita diretora mandando eu lavar as latrinas, ou ainda o maltrato do convento de onde eu evolui para a UTI, salva por um médico bom caráter, nunca passa, sempre volta. Eu já havia esperado tanto, já havia dado tanto murro em ponta de faca, mas agora, graças à doença, estava aposentada, não por idade, nem merecimento, era necessidade. Como aqueles discursos de que precisamos levar cultura para periferia me feria, temos a nossa própria cultura, ou melhor, a cultura real, não somos caricatos como certas pessoas. Chegou o dia que alguém me perguntou onde serviam o cafezinho, onde ficavam as vassouras, entrou na sala errada. Será que só eu passei por isso? Na quarta semana o professor me enxergou como aluna? Não. Alguém disse em alto e bom som na sala:

- Mas que honra estar nesta sala com a mãe de um nobre artista popular.

- Quem?

Meu rosto queimou, pensei até em pedir desculpas por todos ali, foi aí que o professor se sentou a meu lado, pegou o flautim e disse:

- O flautim é o instrumento do capeta.

Deu a hora do intervalo, me levei, e fui embora dali, não sou mais religiosa, mas aquela fala me entristeceu, fui a uma lanchonete, me dei um lanche a minha criança, e levei ela pra casa de táxi, nem sorri nem chorei, segui. Me matriculei numa aula de fotografia, a mesma coisa, num laboratório de revelação, patiwork, bordado, livre, avesso perfeito, tecelagem, rococó, sempre se repetia o impensável. Na aula de fotografia roubaram meus cabos três vezes, na tecelagem ela nunca tinha tempo pra mim, na de papel machê, várias vezes, eu apertava a campainha e ninguém respondia e o porteiro me dizia que tinha gente na escola.

- Você é muito chorona, tem mania de perseguição,

- Me arruma um ingresso para o show do seu filho?

Ah, se não fosse o curso de diáspora pra eu parar de confundir maldade com acaso. Era muita coincidência, todas as pessoas deveriam fazer silêncio como as imagens ou pelo menos algumas. Depois fui ao Manequinho Lopes aprender sobre plantas, o curso estava cheio de gente que se formou em coisas que não o cabia e estavam ali, como mestres do fracasso, interrompendo o professor com suas dúvidas certas cheias de fracasso e preconceito. Nesta eu fui até o fim, lanchava sozinha, não fiz amigos, fui chamada de egoísta, só porque ela é mãe de quem é. Não, só porque eu sei quem eu sou e me respeito, não vou negociar minha humanidade com vocês, vão a merda! Mesmo porque eu saia de casa 4h30 da manhã e levava meu lanchinho, coisa que este povo ordinário metido a besta nunca tem. Eu corria o risco de ter que dividir com eles, nunca! Um dia uma colega de sala, de franja cortada a machado, me chamou e fez uma graça comigo, depositou na minha mão um punhado de minhocas, eu levei um susto e ela me disse que ali não era o meu lugar.

- Eu sei onde é meu lugar.

Fiquei contente porque respondi em voz alta, acho que estou perdendo a timidez, sorri pra dentro. Abutres tem em todo lugar não só na estrada pra Minas Gerais ou Itanhaém. Tem nome, endereço fixo, e estão sempre bem do nosso ladinho nas livrarias, nos cafés, nos bulevares, nos museus, nos desfiles, e nos shows, pedindo pra entrar sem pagar.

Incrível como o caminho de voltar pra casa e descobrir que minha mandala roda de outro jeito, que sei cantar pra mim como ninguém e tem uma voz dentro de mim que dita as letras prontas. Que escola está a esta altura? Tenho que me orgulhar de mim, apesar de mim e deles. Tenho que honrar o que sei e o que posso, porque tenho netas e metas, que vão precisar saber das pedras que já pisei abrindo caminhos, e pendurar nossas fotos na parede, derrubar todos os borba gatos das salas, meu sofrimento tinha um tempo.

Ao me encontrar com pessoas como eu, procurantes de si, ali no Cachoeira, a casa de Seu Paulo Dia ou a Aparelha Luzia, do Laboratório Fantasma ao Museu Afro, e antes de me tornar "aluna", tornar-se humana. Aí Saloma Salomão, meu mestre, perguntou: Levante, diga seu nome e diga porque veio até aqui?

- Meu nome é Jacira, vim até aqui por sugestão do meu psiquiatra.

Nunca foi sorte, sempre foi Exu!