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Café com Dona Jacira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A viagem

Grãos: Foto de Sheila Manuel (Moçambique) - Victor Balde/Jouis Fotografia
Grãos: Foto de Sheila Manuel (Moçambique)
Imagem: Victor Balde/Jouis Fotografia

04/04/2021 06h00

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- Óia moço, quando ouvi dizer que um bando de gente ia pisar as pedras que o mestre pisou, pensei: vô tamém.
Tamém é sésto, sabe? É jeito de prosear, deixe pra lá o senso corretor, pegue uma baga de cana pra chupá, e se alegre, sente aí e assunta. É fala corrente de minha gente aqui no Ataliba.
Abra bem os ovido que eu vô li contá uma história de superação.
- O sinhô parece uma mutuca me aferroando com tanta pergunta.
Tá certo, vamo lá...
Num é a primeira, nem vai ser a última vez que um espírito sem luz que pergunta isso.
- Gente com minha cor de pele, meu gênero, com este cabelo encaracolado, pode viajar para todo lado?
Fique ciente que foi assim que Lembá me fez.

Esqueça esta história de raça pura, um dia vocês ainda se curam de todo este mal que a hegemonia branca te fez. Sim, também sei falar difícil.
O mundo nunca foi só de vocês.
Eu mesma me perguntei: - Por quê? Eu mesma respondi: - Num sei!
Nunca estive lá, mas sinto saudade, sinto uma saudade tão arrochada que parece que o cheiro do café que me viu crescer não veio da cozinha de mãe, aqui da vila, veio de lá.
E nem sei qual é o rumo mais vô. Eu vô! Eu vô só esperá minha mãe acendê a candeia e pronto. E por onde eu passar o vento há de clareá.

Tenho uma voz comigo, dentro dos meus ouvidos soprando a cantiga de que este dia ia chegar.
Taí chegou, a voz de dentro nunca se enganou!
Tenho até receio de chegar no caminho e dar de cara com as árvores que imagino com os caminhos que domino, pisar no chão de terra, comer poeira, como se lá tivesse nascido, crescido, plantado e regado meu axé, com a mesma familiaridade que pego metrô em Santana e desço na praça da Sé.
Não careço endereço.
O vento é quem há de me guiar, a candeia já tenho, Yansã vai me emprestar.
E tudo dando certinho eu me ponho a caminhar.
Ah seu contrário saia da frente, arreda! Pode voltar pro seu balaio.
Ogum já consentiu, tá consentido, seu sultão da mata viaja comigo e os caboclo tudo hão de vigiá a cancela, por onde eu hei de passar.

Tô falando, escrevendo e arrumando a mala, o convite entrou em mim adentrou a sala.
É o mesmo que tá vendo aqui o mestre chegando na soleira da porta pitando.
Ele sentado no sofá dizendo:
- Eita! Leve roupas femininas cê ainda é tão menina, se prepare pra andar. Essa outra se num leva, aperta, num dá corage, se nem vai precisá.

O mestre convida a gente e a gente tá convidado.
O ritual está posto, banho de folha tomado, pé e ori preparado.
E antes do galo cantar eu já tava levantado.
Tinha nada marcado, mas se Zambi me encorajou tá certo, tá firmado.
A coragem que tenho foi meu Deus que me deu e tudo que meu Deus me deu, é meu.
Meu mestre me chama, eu vô.
Porque dentro de mim tem um atalho que vai dar em algum lugar, lá está sua outra metade e eu preciso encontrar.
O leme é meu coração que diz que só volta bater direito, só retorna o compasso no peito, quando eu buscar sua metade que ele nem sabe em que encruzilhada perdeu.
Num diz, mas eu imagino, sô assim desde minino, parte deste coração tá perdido, na África, na caatinga, no cerrado, no sertão.
Na verdade, vô te contá, nem sei mesmo onde fica direito, mas tenho o endereço estreitado no peito. E ele num é de errá.
Meu caminho foi traçado no útero, em Aruanda, bem antes do tráfico minha mãe me abençoava.
Sou de boa linhagem, de gente nômade, criador de gado e contador de história, de tecelões e poetas.
Eu só poderia ser mestra e seguir o mestre é meu caminho, ofício e devoção.
E num sigo sozinha, trago minha nação Xangô, trazendo justiça e seu viludo, meu irmão.
Pra onde eu for, levo encantarias onde eu tocar, tudo cresce se enfeita dá fruto, flor e semente.
Sou herdeira de benesses e bem viver, e deixo legado pra muita gente.
Tô falando só pra ocê sabê, crer ou não é com você.
Do breu da noite, onde descanso ao clarear do dia a candeia do tempo de Lembá é minha bandeira, me vigia.
Exu abre caminho, o mundo é meu.
Então escuta o que vô fala:
- Mãe mandou dizê que assim que eu chegar no lugar onde quero chegar, é pra eu procurar uma pessoa, que é pra ela me abençoar e me apresentar pra o Deus dela pra eu agradecer e entregar a bandeira, esta que eu vô levar.
Quando tiver bem pertinho o cheiro do café de mãe me chamar, o sinhô pode me deixar bem na beira do caminho que já me dou por contente.
Sou filha da estrada e trago a sola dos pés calejadas de andar mundo afora, como tanta gente.
E nunca se preocupe comigo que sei viver, fui feita assim pra domar e ser domada, e sou filha e irmã do pó da estrada e trago comigo o ori protegido, minha cabaça de criação.
A lua é minha musa, o sol é meu irmão, as estrelas do céu tenho na palma da mão.
Se o coração disser sim, é sim, se disser não, é não.
Então de onde o sinhô me deixar, pego beco, sigo rente, atalho, estirão, pinguela, ponte, corrente. Até dar, onde tenho que chegar.
Caminho traçado em sonho que o mestre ensinou.

É uma rua de terra a poeira cobre a gente e eu sigo sem reclamar, sigo contente castigando um gainho de capim, gordura nos dente, vô andando sigo em frente.
E só paro quando chegar.

- Hei moço, bom dia, a paz seja tua guia desejo dias melhores pra você e sua família.
- Tô procurando a Uol, a Ecoa, conhece? Pode me ajudar?
- O senhor nem me conhece, vô me apresentá.

Nasci longe do meu destino, cercado desde menino de tudo que não é meu.
Nas sendas deste caminhar triste, parte de meu coração se perdeu.
Preservei dentro de mim uma fagulha acesa, minha lanterna nesta busca eterna, pra ver se finda meu penar.
Traçaram pra mim uma estrada que eu nunca quis caminhar.
Tenho pra mim que o sagrado me guardou a essência no baú do tempo de Lembá.
Meu pai na frente,
Minha mãe na guia.
Procuro o caminho, ainda preciso chegar.
Se ouço tambores, vejo colorido, borboletas no caminho, passarinhos e louva-a-deus.
Meu coração palpita, parece que cheguei perto dos meus.
Mas na cabala da vida nas voltas que meu tronco correu.
Tantas armadilhas tanta gente fingida encontrei.
Eu me enganei e penei, paguei pela inocência.
Hoje sou mais cautelosa, nem é qualquer brilho que me toca.
Que hoje tenho juízo, me dou trato, conheço de longe uma borboleta disfarçada de capitão do mato.
Não quero que se ocupe comigo, é só me mostrar o caminho.

Minha mãe acredite, acho que estou perto, algo me diz que o rumo é certo, quando chegar te confirmo.
A gente lá de onde eu venho quando erra ou quando acerta, quando chora, ri ou canta.
Nem lembra nome de santa,
A gente chama mesmo é pela mãe da gente, e ele vale pra nóiz.
A santa é tudo boazinha, mas mãe é mãe né, moço?
Mãe é um colosso e cada qual tem a sua gente de carne e osso.
Gente que sente mais. Por isso o aviso preciso.

Quando a cobra bater o guizo, foi eu que dei o aviso, o céu há de clarear.
Nunca mais me perco na vida, assim que encontrar o que a alma precisa pra descansar.

As águas que correm de mim com outras águas vai se encontrar.
A viagem tá marcada, só preciso achar o lugar de embarcar.

Lembá em nome de minha nação agradece.
Com muita fé enrolo a bandeira e entoo sem medo meu segredo, minha prece.

- Oh moço fechei a mala, tô na porta da sala esperando ocê passá.
Nem pense em me deixar de fora. Eu vô.
Ecoa tá me chamando meu nome, tá nesta lista pode oiá.
Trago a bandeira da paz do povo de Inkise Lembarenganga, o Oxalá da minha lei me encarregou de empunhar e hastear na antena do futuro.
Tenho pra mim que a Uol é este lugar.
Em nome do meu povo, eu uma mulher negra venho te saudar.
E agradecer a oportunidade.
Tenho um coração partido, uma parte tá aqui comigo.
A outra eu vim buscar.