Coronavírus: pior já passou?

A vida está cada vez mais perto do "normal" e número de casos e mortes desacelerou. Como manter isso?

Carlos Madeiro Colaboração para VivaBem Arte UOL

Foram sete meses de pandemia até que o Brasil atingisse a marca de 150 mil mortes causadas pela covid-19. Somos o segundo país a alcançar o número, atrás apenas dos EUA.

Nesse momento, o país está em um cenário conflitante: enquanto em muitas cidades a vida está cada vez mais próxima do "normal" —e não há problema algum nisso, já que os médicos sabem lidar melhor com a doença, os hospitais estão longe de um colapso e a retomada das atividades tem sido planejada—, em muitos locais seguimos sem controle adequado da transmissão do coronavírus, o que deixa a dúvida se uma nova onda da doença nos atingirá.

As estatísticas apontam que o número de casos e mortes vem caindo ao longo das últimas semanas, porém, em meio a tantas dúvidas, uma certeza: a pandemia teve um freio, mas não acabou —nem dá sinais que isso ocorrerá antes do desenvolvimento de uma vacina. Devemos continuar tomando cuidados básicos (como usar máscara, evitar aglomerações) e seguir buscando compreender melhor o comportamento da doença para evitar que o número de óbitos volte a acelerar.

Para Bernadete Peres, vice-presidente da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), o número de 150 mil mortes poderia ter sido evitado, mas também poderia ter sido ainda maior.

Nós tivemos uma ausência do governo federal na resposta à epidemia, tanto do ponto de vista clínico-epidemiológico, como do ponto de vista simbólico, social, de investimento em pesquisas. Mas ela poderia ser maior, não fosse a articulação de serviços e instituições que ainda resistem nos territórios, que representam o SUS (Sistema Único de Saúde). Tivemos ação de universidades e de instituições de pesquisa e de ciência.

O que pode explicar a desaceleração por aqui?

Desde agosto, a pandemia de covid-19 apresenta o número de casos e mortes em queda. Segundo Márcio Sommer Bittencourt, médico do centro de pesquisa clínica e epidemiológica do hospital universitário da USP (Universidade de São Paulo), a redução pode ser explicada por uma série de fatores.

"A inserção do vírus é um processo lento, seguido de um período de aceleração. À medida que uma quantidade de pessoas fica infectada, essa curva começa a desacelerar um pouco. Mas isso não é imunidade de rebanho que as pessoas estão falando. Menos do que isso você já tem uma desaceleração da curva, é natural", explica.

Outro ponto que ele avalia como importante é que as pessoas estão realizando medidas preventivas nessa retomada das atividades normais. "Ainda há algumas medidas de distanciamento implementadas e, independente das ações governamentais, você também tem as pessoas se protegendo, fazendo algum grau de distanciamento, evitando alguns ambientes e se protegendo", diz.

Para ele, a junção de vários fatores levou a essa queda.

Quando você soma uma parte dos doentes que não sai de casa; uma parte da população usando máscara; uma parte da população higienizando as mãos; uma parte da população permanecendo distanciada; uma parte da população já infectada e, provavelmente, já imune; tudo isso se soma e faz com que a curva desacelere. Aí, temos uma queda lenta e gradual.

Um outro fator que pode ajudar a entender nosso cenário atual é a sazonalidade, já conhecida de outras doenças. Em cada local temos um período do ano em que a transmissão de doenças respiratórias maior. Na região amazônica, costuma ser na época de chuvas, entre fevereiro e março. No Nordeste, também é na época de chuvas, que é mais perto de abril ou maio. No Sudeste, Sul e em uma parte do Centro-Oeste, geralmente ocorre no período do frio, mais próximo de junho, julho e agosto.

"Como nenhuma das regiões do país está no período sazonal agora, isso talvez ajude na desaceleração. Se esse é o componente mais importante, a gente ainda não sabe, porque é o primeiro ano com esse vírus", explica Bittencourt.

Projeções sobre o futuro esbarram em viabilidade dos dados

O Brasil passou por uma queda, nas últimas semanas, nos números da média móvel de novos casos e mortes, mas agora parece entrar em uma fase de estabilização, segundo análise do projeto Covid-19 Analytics, da PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), a pedido de VivaBem.

Segundo Marcelo Medeiros, professor do Departamento de Economia da PUC-Rio e coordenador do projeto, a doença se distribui de diferentes maneiras entre as regiões do país.

De acordo com a previsão do dia 7 de outubro, as novas mortes por covid-19 devem apresentar uma estabilização nas próximas semanas. A previsão indica uma média de 702 mortes diárias, levando a um total de 158.263 mortes acumuladas. Já com relação aos casos, a previsão indica uma leve diminuição no número de novos infectados, com uma média prevista de 24.613 novos casos por dia, levando a 5.352.880 casos acumulados no dia 21 de outubro.

Segundo a análise do projeto, o R (que é a taxa de reprodução) do vírus no país, teve um leve aumento em setembro. Atualmente, ele está em 0,94 (abaixo de um indica redução do ritmo da epidemia). Em 27 de setembro, por exemplo, esse R era de 0,92 —quando o R está abaixo de 1, significa que cada pessoa infectada transmite o vírus para menos de uma pessoa.

Medeiros afirma que um dos desafios de entender o cenário brasileiro é que há problemas nos dados. "Temos o problema dos atrasos, mas tudo parece indicar uma estabilização. Mas tem muito problema nestes dados, veja o exemplo do Ceará", afirma sobre o estado nordestino que em um dia de setembro apresentou 10 mil novos casos seguido por um valor negativo de 7.500 no dia seguinte. Por conta disso, a previsão agregada para o Brasil também é afetada, pois ela é a soma das previsões estaduais.

Outro ponto que varia e dificulta uma leitura nacional única é a quantidade de testes —que foram predominantes nas regiões mais ricas. "No Sul, foram testadas 4,01 vezes mais pessoas do que o número de casos confirmados; no Sudeste, 3,75 vezes. Esse quadro é diferente nas outras regiões, que apresentam uma testagem menor, no Nordeste, 2,7 vezes; no Centro-Oeste, 2,26 vezes e no Norte, 2,08 vezes", aponta.

Os cuidados que ainda precisaremos manter por um bom tempo

Segundo Vera Magalhães, infectologista, professora e pesquisadora em doenças tropicais da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), apesar da desaceleração do número de casos e mortes, não há qualquer motivo para relaxar nas medidas de prevenção antes de uma vacina.

"Todos os cuidados devem ser mantidos da mesma forma que no início da pandemia. Nós não temos ainda uma medicação específica, nem uma vacina. Apesar dos avanços nas medidas de suporte, e mesmo da diminuição de óbitos e pacientes graves, a covid-19 ainda continua amplamente em circulação. E isso não é uma percepção pessoal, mas de vários colegas: os casos leves ainda continuam ocorrendo de forma frequente", afirma.

Veja cinco cuidados importantes que devemos tomar:

  • Manter os testes na população

    Testar é importante para ter a real dimensão do problema. Quando se testa pouco, tem-se o olhar apenas para os casos mais graves, o que é muito limitado.

  • Usar máscara em todos os ambientes públicos

    O uso de máscara está cada vez mais valorizado. Existem artigos que mostram que ela diminui o inóculo viral, e isso é importante para a determinação da forma da doença, se é mais ou menos grave. Portanto, saiu de casa, use máscara.

  • Evitar aglomerações e buscar locais arejados

    Procure manter distância de ao menos 1 metro de outras pessoas em locais públicos, para diminuir o risco de infecção. Quando sair, tente permanecer em lugares arejados ou com boa circulação de ar. Evite ambientes fechados.

  • Higienizar as mãos e os ambientes com frequência

    Lavar bem as mãos com água e sabão ou usar álcool em gel 70% são medidas que devemos tomar sempre, não só na pandemia. Nos locais fechados em que pessoas trabalham juntas --escritórios, por exemplo-- a higienização deve ser constante para minimizar o risco.

  • Se adoecer, adotar o autoisolamento imediato

    A maioria das pessoas com sintomas gripais não precisa procurar o hospital, mas quem é de grupo de risco deve contatar um médico assim que perceber sintomas, já que essas pessoas têm um potencial maior de apresentar um quadro grave da doença.

O Brasil terá uma segunda onda?

Essa é uma questão que tem sido muito levantada atualmente. Para Fernando Rosado Spilki, presidente da SBV (Sociedade Brasileira de Virologia), existe uma grande chance de o Brasil enfrentar, sim, uma nova onda da doença.

Em países onde a pandemia foi controlada de maneira muito mais efetiva, isso já está ocorrendo, assim como já há sinais de aumento do número de casos em Manaus, por exemplo. A questão não seria se, mas quando esta nova onda virá.

O virologista afirma que, diante do cenário visto pelo mundo, é necessária muita cautela nas flexibilizações que estão sendo colocadas em prática. "Precisamos de um monitoramento criterioso do número de casos", diz, explicando que, como nunca conseguimos controlar verdadeiramente a covid-19, a tendência é que na maioria dos locais as várias ondas se acumulem.

"A gente nem sente um decréscimo tão forte ainda, como se observou em outros locais, e já ficamos à mercê de um novo crescimento —e isso é muito perigoso. Mesmo que a gente não tenha voltado a índices do início da pandemia, estão sendo tomadas medidas de flexibilização de isolamento que podem gerar uma onda de grande magnitude. Tem de aguardar o que vai acontecer, mas é bastante preocupante", define.

Spilki ainda afirma que a imunidade gerada na população não é suficiente para proteger de novas contaminações. "No nível que se conhece hoje —ainda que tenha diferença entre uma ou outra população específica— é baixo para dizer que tem influência, seja no decréscimo de casos, seja para proteger de uma nova onda. Se tivermos uma segunda onda em breve, ela estará bem mais ligada ao relaxamento do isolamento", opina.

Quando você soma uma parte dos doentes que não sai de casa; uma parte usando máscara; uma parte higienizando as mãos; uma parte permanecendo distanciada; uma parte já infectada e, provavelmente, já imune; tudo isso vai se somando e faz com que a curva desacelere

Márcio Sommer Bittencourt , médico do centro de pesquisa clínica e epidemiológica do hospital universitário da USP

Os cuidados com a volta às aulas

Um dos maiores dilemas da flexibilização adotada pelas cidades está na volta ou não das aulas presenciais. Algumas delas já deram início às atividades, outras não; não há um protocolo nacional sobre o tema, o que torna o cenário mais incerto.

No último dia 14 de setembro, a OMS (Organização Mundial de Saúde), o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e Cultura) lançaram uma atualização do documento "Considerações para medidas de saúde pública relacionadas à escola no contexto da covid-19", em que defendem que a reabertura deve ser uma prioridade dos governantes.

Para Antônio Silva Lima Neto, epidemiologista, professor da Unifor e pós-doutor pela Escola Pública de Saúde de Harvard, nos EUA, já há condições de retomar aulas em muitos locais do país.

Há essa necessidade urgente de, em cenários de baixa transmissão, de transmissão controlada, termos um plano seguro de reabertura das aulas. E isso deve ser implementado o mais rápido possível. Hoje, o fechamento de escolas em cenários de alta vulnerabilidade social só deve ser pensado ou mantido em casos extremamente necessários e onde, de fato, haja transmissão sustentada e descontrolada de covid-19.

O pesquisador, que já conduziu trabalhos sobre a violência e a vulnerabilidade social na adolescência, aponta que a evasão escolar causa problemas ligados à criminalidade. "Não só os jovens assassinados, mas aqueles que também são os infratores, têm sempre o abandono escolar como forte preditor. O afastamento do estudante da escola é associado a episódios violentos", diz.

Para ele, as autoridades devem fazer o debate seguindo boas práticas, como manter salas de aula arejadas. "Nós temos cidades que estão com transmissão muito baixa e permanecem fechadas. Acho que pecar pelo excesso nesse momento é problemático. Nós deveríamos nos preparar, seguindo protocolos seguros, bem faseados, de reabertura gradual com responsabilidade. A gente precisa sair desse 'Fla x Flu' de rede social. Tem que ter um rigor científico, tem que segui-lo e saber que é muitíssimo grave para crianças e jovens", pontua.

Silva ainda explica que a OMS aponta que a reabertura das escolas não contribuiu significativamente para o aumento da transmissão comunitária na maioria dos países. "A exceção foi Israel, que não seguiu protocolos de distanciamento e recomendações da OMS quando resolveu voltar com a curva ainda ascendente. Então, com essa exceção, não houve nenhum nenhum registro de aumento de transição comunitária, expandida para um país como um todo", diz.

Nós temos cidades que estão com transmissão muito baixa e permanecem fechadas. Acho que pecar pelo excesso nesse momento é problemático. Nós deveríamos nos preparar (para a retomada das aulas presenciais), seguindo protocolos seguros, bem faseados, de reabertura gradual com responsabilidade. A gente precisa sair desse 'Fla x Flu' de rede social

Antônio Silva Lima Neto, epidemiologista, professor da Unifor e pós-doutor pela Escola Pública de Saúde de Harvard (EUA)

Imunidade de rebanho vai chegar antes da vacina?

Um dos temas mais debatidos após a queda no número de casos de covid-19 é se as cidades brasileiras já teriam atingido um percentual de infectados capaz de criar a chamada imunidade de rebanho. O tema é controverso, segundo especialistas, e não há números que apontem com segurança que isso ocorreu,
até porque a imunidade após ser contaminado é temporária, segundo estudos já publicados.

"Imunidade de rebanho de verdade, a gente só atinge realmente com vacina. Acho que o caso de Manaus deixa isso muito claro de uma forma bem emblemática", afirma Natália Pasternak Taschner, microbiologista e fundadora do Instituto Questão de Ciência.

Ela explica que, como a capital amazonense foi uma das primeiras a ter disseminação descontrolada da doença, muitas pessoas adoeceram, e houve um pico da covid-19 muito alto e rápido. "Depois desse pico, começou a ter uma queda muito abrupta nos casos e nos óbitos. Hoje, depois de um exame de soro-prevalência feito pelo grupo da professora Ester Sabino, em que corrigiram estatisticamente aquele problema da perda dos anticorpos, eles estimaram que mais de 60% da população de Manaus já teve a doença e, portanto, estaria imune."

A cientista ainda explica que esse roteiro seguido pela covid-19 é o mesmo de outras infecções.

Na imunidade de rebanho, que é temporária, sempre vai ser assim para qualquer doença: você a atinge, mas pessoas mudam de cidade, pessoas vão e vêm, pessoas nascem; então sempre vai ter uma quantidade de pessoas suscetíveis voltando a circular. E daí a doença volta a circular também.

Em recente entrevista, o pesquisador Marcelo Gomes, coordenador do sistema Infogripe, desenvolvido pela Fiocruz em parceria com o Ministério da Saúde, afirmou que ainda é cedo para dizer que uma "segunda onda" do novo coronavírus atingiu Manaus, mas o momento é de atenção.

A distribuição das vacinas e como elas vão funcionar

Sem drogas eficazes contra o vírus à vista, a maior esperança que temos hoje em voltarmos à nossa vida pré-pandemia é a descoberta de uma vacina. E não falta empenho científico para isso.

Segundo Renato Kfouri, diretor da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações), apesar do esforço inédito feito por laboratórios e pesquisadores no mundo todo ainda não é possível prever uma data.

A ciência precisa do seu tempo, não é o tempo do interesse político ou de um dono de laboratório.

Hoje, das quase 200 candidatas às vacinas, há cerca de 40 delas em fase de estudo clínico e 10 em fase 3. Dessas na fase mais avançada, quatro estão sendo testadas no Brasil, apontado como local ideal para esses testes por conta da alta circulação do novo coronavírus —e uma quinta pode entrar, caso liberem a pesquisa da vacina russa no Paraná e na Bahia.

"Os dados de fase três são importantes para confirmar quais delas vão se demonstrar seguras e eficazes, que são os desfechos a serem considerados na aprovação de uma vacina", pontua. Para chegar a certeza antes de iniciar uma imunização em massa, diz, é preciso que se passe por várias fases que deem respostas como qual será o tempo de imunização e quantas doses são suficientes.

"Precisamos saber se a vacina vai prevenir formas leves ou graves, se vai prevenir hospitalização, se previne morte. As imunizações podem ter eficácias diferentes para esses desfechos clínicos. Só assim, conhecendo essas limitações e as vantagens de cada produto, vamos conseguir definir as estratégias."

A velocidade com que a vacina será desenvolvida, porém, deve ser recorde por que cientistas se valeram de estudos já feitos com as vacinas na fase pré-clínica da Sars (Síndrome Respiratória Aguda Grave) e Mers (Síndrome Respiratória do Oriente Médio), doenças causadas por outros coronavírus. "Isso facilitou muito, não saímos do zero para o desenvolvimento dessas vacinas", aponta.

A expectativa para após a descoberta é que haja uma priorização de grupos específicos, e que dificilmente haverá doses para toda a população.

Só os idosos do país são 28 milhões, mais cinco milhões de profissionais da saúde. Ou seja, pouco provável que nós tenhamos vacina para criança, adolescente e adulto em um primeiro momento.

Segundo ele, uma vantagem brasileira é o PNI (Programa Nacional de Imunizações), que é considerado um dos melhores do mundo. "Nossa organização é muito boa, são mais de 35 mil salas públicas por todo o país, que têm logística de transporte a frio organizada. Obviamente vai precisar se adaptar, ter treinamento, mas creio que isso será feito sem problemas e de forma apropriada", prevê.

Ainda sobre a imunidade coletiva, Pasternak faz um outro alerta. "É preciso uma vacinação com bastante adesão, senão acontece o que aconteceu com o sarampo: quando caiu a adesão ao programa vacinal, a imunidade de rebanho diminui e os casos voltam a aparecer", finaliza.

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