Lágrimas invisíveis

Saúde mental dos sepultadores está abalada por causa do coronavírus, mas como se manter são?

Priscila Carvalho Do VivaBem, em São Paulo Fernando Moraes/UOL

Diante de um cemitério quase vazio, onde só é possível ouvir o latido dos cachorros e a chegada dos carros do serviço funerário, o motorista da prefeitura pergunta: "É ali?" Apontando para os túmulos mais próximos. O sepultador James Alan balança a cabeça e responde que sim: "Onde está o pessoal de branco".

Não dá nem cinco minutos para um outro carro encostar e o funcionário fazer a mesma pergunta. Nas mãos, um formulário com o código D3, indicando que a pessoa morreu de covid-19 ou estava sob suspeita. Cenas como essas viraram quase que rotina no maior cemitério da América Latina, o Vila Formosa, na zona leste da capital paulista. "Tivemos 750 sepulturas ocupadas em 15 dias. Lembro de um dia que, em um intervalo de três horas e meia, fizemos 43 sepultamentos, sendo que 22 foram de covid", relembra Alan.

A cidade de São Paulo conta com 257 sepultadores, 49 só no Vila Formosa. O local precisou fazer algumas mudanças para garantir a saúde e evitar a contaminação desses funcionários. E, se antes o serviço já era exaustivo, agora o cansaço vai além do físico e já deixa a saúde mental na corda bamba. "Parece que você sempre está com a cabeça pesada", diz Wilker Costa, sepultador que trabalha no cemitério há nove anos.

Saindo do estado de São Paulo e indo para o Amazonas, em Manaus, o cenário é ainda pior. O colapso no sistema de saúde e os enterros em valas deixam o psicológico muito abalado. Para Genésio Filho, que trabalha há 15 anos no cemitério Nossa Senhora Aparecida, conhecido como Tarumã, não tem como se acostumar.

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Mudança na rotina e excesso de trabalho

No fim de abril, o prefeito de São Paulo, Bruno Covas, anunciou um plano de contingência para a criação de mais de 13 mil novas sepulturas, das quais 8.000 somente no cemitério da Vila Formosa, na zona leste. Por causa disso, o ritmo de trabalho aumentou e os sepultadores já sentem na pele os impactos.

Somente na última semana, foram abertas 510 sepulturas para atender a crescente demanda por enterros. Essa abertura emergencial reflete o aumento no número de sepultamentos que não param de ocorrer no local. "No meu último plantão, fizemos 32 sepultamentos, dos quais eram 15 confirmados para covid-19 e 17 a confirmar. Antes, fazíamos uma média de 3 a 4. Agora, está sendo sempre de 30 a 32 todos os dias", diz Alan.

O funcionário conta ainda que em dias atípicos os sepultadores já chegaram a fazer mais de 60 enterros. E essa contagem é tão expressiva que chega a impressionar os próprios trabalhadores.

E o ritmo não para. Quando eles acham que poderão ter algum tipo de descanso, chega mais um carro com um caixão e o processo é o mesmo: retira-se a urna funerária, colocam a corda, colocam na sepultura e começam a jogar terra com a pá.

Não há tempo nem de pensar ou tentar se emocionar durante o trabalho. Todo procedimento leva praticamente cinco minutos. "Todo sepultamento mexe com a gente, mas nós somos os empregados invisíveis. Temos que fazer nossa função para minimizar a dor daquela família o máximo possível", afirma Costa.

Cansaço mental não passa

"Estou cansado". É assim que o sepultador James Alan começa a entrevista enquanto faz as fotos para a reportagem. Na sequência, Wilker Costa também alega estar bem exausto já que o trabalho está mais puxado e com poucas horas de descanso.

Em Manaus, Genésio estava em seu dia de folga enquanto dava entrevista, mas já vinha de uma semana em que trabalhou todos os dias. As reclamações sobre o cansaço físico são as mesmas. Mas a cabeça trabalhando o tempo todo e o "não desligar" foram a principais queixas dos três. "Fico um pouco nervoso, me pego pensando sempre, é muito triste", conta.

E essa rotina se reflete na hora de jantar, em momentos em casa com a família e na ida ou volta do trabalho. Costa, por exemplo, gasta duas horas e dez no transporte público saindo do bairro Jardim Japão, na zona norte, para ir para a zona leste todos os dias.

Tentar driblar essas angústias é quase impossível. "Minha esposa até me fala para esquecer um pouco o trabalho quando estou em casa com ela e meus filhos. Mas não tem como, sabe? Me pego pensando nas sepulturas que devemos abrir e já cheguei a pensar quantos corpos virão amanhã", afirma Alan.

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Não podemos colocar nossas lágrimas para fora

Wilker Costa

Cenas que não saem da memória

Eles podem estar na profissão há dez, 15 ou até 20 anos. Para os três sepultadores, é quase impossível se acostumar ou achar normal tudo isso que está acontecendo. Enterrar uma grande quantidade de corpos todos os dias não os deixa mais frios ou insensíveis. Muito pelo contrário.

O Dia das Mães marcou Genésio. Mesmo tendo sua mãe viva, o sepultador disse que se emocionou ao pensar em quantas pessoas estão enterrando familiares e não podem nem se despedir.

Quando fala dos cuidados que está tendo para não contaminar a família e da preocupação que tem, principalmente com a mãe, se emociona. O silêncio fica por alguns segundos e depois vem o choro. Em seguida, ele pede uma pausa e diz: "Desculpa. Deixa eu puxar um fôlego aqui".

Outra cena que o chocou foi quando os enterros no cemitério onde ele trabalha começaram a ser feitos em vala. "Muito triste. Marca muito e não tem explicação, não tem justificativa."

O mesmo sentimento aconteceu com os sepultadores de São Paulo que, diante de tantos enterros, se espantaram com uma história marcante. Em menos de duas semanas, um homem enterrou o primo, o tio e estava com outra pessoa da família intubada no hospital que, provavelmente, morreria em alguns dias. Todos foram vítimas da covid-19.

Noites mal dormidas

E se durante o dia a mente não desliga, à noite é ainda pior. O sono não vem e a preocupação sempre está ali.

Um descanso que antes ocorria de forma natural e chegava a durar de seis a oito horas por noite, agora não passa de algumas horas na madrugada.

"Se eu falar que estou dormindo normal estaria mentindo. Comecei a dormir somente três horas por noite. Às vezes, vou deitar por volta da meia-noite e às três da manhã acordo sem sono e já vou me arrumar para trabalhar", conta Genésio Filho.

Segundo ele, as noites mal dormidas pioraram de algumas semanas para cá.

Para James Alan, o cenário é o mesmo. O sepultador afirma que dormir tem se tornado cada vez mais difícil e a insônia virou uma companheira frequente.

Sempre fui atento ao meu serviço, mas está sendo exaustivo. O estresse mental é muito grande.

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Éramos invisíveis. Agora, as pessoas nos veem com outros olhos

James Alan

Cuidado e higiene redobrados

Ficar doente e morrer por conta do coronavírus já virou a preocupação diária de todos eles. A rotina meticulosa de trocar as roupas, colocar EPIs e se trocar novamente na hora de ir embora funciona quase que de forma automática.

Uma roupa para ir ao trabalho, o uniforme, e outra roupa para ficar em casa. Quando terminam o trabalho, os EPIs são descartados e eles vão para o chuveiro do vestiário tomar banho. No transporte público, cuidado redobrado para não se contaminar.

Ao chegar em casa, a rotina não é diferente. As roupas são trocadas, colocadas em baldes separados e os sapatos também são higienizados. Daí, outro banho.

"Todo dia tenho medo de ficar doente e contaminar minha família, por isso tenho muito cuidado. Minha esposa já fala para eu tirar a roupa fora de casa", afirma Costa.

Não tem como se acostumar. É uma coisa estupenda, não tem explicação, não tem justificativa.

Genésio Filho

Ajuda psicológica é fundamental

O medo de adoecer e as constantes preocupações na cabeça fazem com que esses trabalhadores precisem de um acompanhamento psicossocial. Quando há necessidade de ajuda profissional, segundo Wilker Costa, o pedido pode ser feito ao encarregado da "quadra" em que eles trabalham, que direciona para a administração geral do cemitério.

Depois disso, a chefia responsável o encaminha para o serviço social, no qual o sepultador terá apoio psicológico. Mas nem sempre foi assim.

De acordo com a Prefeitura de São Paulo, o Serviço Funerário disponibiliza, há cerca de dois anos, encontros semanais gratuitos entre servidores e psicólogos. O trabalho é feito por equipes de estudantes de psicologia que prestam atendimento voluntário aos funcionários da autarquia.

Por conta da pandemia, os atendimentos passaram a ser realizados de forma online. O órgão, no entanto, não especificou se há atendimentos individualizados e direcionados a cada trabalhador. E não deu detalhes sobre como funciona esse tipo de ajuda aos funcionários.

Segundo a pasta, por conta do aumento da demanda de trabalho por causa da pandemia, a autarquia vem buscando ampliar a parceria, para que outros servidores também sejam atendidos.

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De culto a churrasco nas horas vagas

Ter uma válvula de escape faz com que esses sepultadores tentem manter um pouco da saúde mental. James Alan encontra nos cultos —que agora são feitos online— uma forma de se tranquilizar: "Faço parte do grupo da igreja, da liderança, então meu refúgio é lá".

Antes, além das idas à igreja, era no futebol que ele também encontrava um pouco de tranquilidade e lazer. Agora, pouco a pouco ele muda a rotina e assiste um filme ou uma série quando consegue.

Já Genésio Filho tenta relaxar nos dias em que tem folga fazendo um churrasco, assando um peixe ou queimando uma carne, como ele diz: "Tomo uma gelada quando estou com a minha família e meu enteado. Isso me ajuda e tento ficar menos estressado."

No caso de Wilker Costa, era nas viagens que encontrava bem-estar e tranquilidade. Agora, por causa do isolamento social, elas terão que ser deixadas de lado por um tempo: "Minha esposa me ensinou e me proporcionou o prazer em viajar."

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