2 médicas, uma luta sem fim

Uma profissional da rede privada e outra da pública falam sobre exaustão na pandemia que tirou 500 mil vidas

Bruna Alves e Luiza Vidal Do VivaBem, em São Paulo

Há pouco mais de cinco meses, em janeiro de 2021, o Brasil chegava a 200 mil mortes por covid-19. Era uma tragédia inacreditável, mas o início da vacinação em diversos países trazia, para muitos, a esperança de que logo a situação começaria a melhorar por aqui.

No entanto, a demora do governo federal para comprar vacinas, ainda em 2020, fez com que o país ficasse "no fim da fila". A imunização avançou em passos lentos, enfrentamos uma "segunda onda" terrível e o resultado está aí: atingimos meio milhão de vidas perdidas, em 19 de junho.

Pais, mães, filhos, amigos. Famílias inteiras foram destruídas e os profissionais da linha de frente estão esgotados de tanto lutar contra uma pandemia que parece não ter fim. Mas, apesar de difícil, a única opção deles é essa.

Para mostrar os diferentes desafios enfrentados e um pouco do "lado humano" dos médicos que estão nessa batalha, VivaBem ouviu Ho Yeh Li, infectologista do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo), um dos principais centros de saúde públicos do Brasil; e Paula Salvador de Toledo, intensivista do Hospital São Luiz Morumbi, da Rede D'Or São Luiz, hospital particular localizado em um bairro nobre da capital paulista, que atende predominantemente pessoas de classe média alta.

Na rede pública: sem hora para ir embora

Não fomos autorizados a passar da catraca do Instituto Central do HC. A conversa com Ho Yeh Li aconteceu numa mureta do estacionamento, que tinha movimentação intensa de carros. O papo durou 30 minutos, tempo máximo disponível em uma agenda apertada, de quem coordena duas UTIs de covid de um dos principais hospitais de referência no Brasil.

A infectologista chega todos os dias às 6h45, mas não tem hora para ir embora e fica até quando for preciso. Apesar da rotina pesada e com tantas preocupações, preserva a leveza e o bom humor: "Tapo todos os buracos, sou mil e uma utilidades."

Pela manhã, dá uma olhada no prontuário dos internados nas UTIs —que geralmente já chegam em estado grave ou gravíssimo, pois são encaminhados de outros centros de saúde do SUS. Prescreve medicamentos, pede exames, organiza os leitos e tem ainda o dever de ensinar e coordenar a rotina dos residentes, já que se trata de um hospital-escola.

Pela estrutura, o HC não sofreu com falta de insumos na pandemia, como outros hospitais públicos do país, mas há uma preocupação diária com os leitos —são 465 destinados exclusivamente à covid-19. Desde março, com a alta de casos, as equipes vão remanejando as vagas sempre que necessário. Mesmo que "no limite", todo paciente consegue seu leito, de enfermaria ou UTI —o que também nem sempre aconteceu em outros hospitais públicos.

E, se em 2020 havia maior envolvimento dos médicos, hoje, Ho conta que o clima é muito diferente. Muitos profissionais que foram contratados no começo da pandemia saíram por conta de novas oportunidades ou para trabalhar em hospitais privados. Por trás há sempre o mesmo motivo: exaustão.

"A grande maioria diz que não aguenta mais tratar todos esses pacientes enquanto a população não faz sua parte. É o sentimento de enxugar gelo", diz. "Tive momentos de dizer: 'chega, vou embora'." Mas a médica segue ali, firme, batendo ponto às 6h45 da manhã...

Na rede privada: ambiente é mais calmo, mas também há esgotamento

Era uma tarde nublada quando chegamos ao Hospital São Luiz Morumbi. Lá a realidade foi outra. Esperamos cinco minutos na entrada e, durante esse tempo, vimos chegar dois carros de luxo, que não precisaram estacionar, apenas entregar a chave para o manobrista.

O concierge nos levou até uma recepção extremamente calma, no 3° andar, um grande ambiente iluminado, muito limpo e com algumas poltronas confortáveis ao centro. O assessor de imprensa nos encontrou, sentou-se na poltrona e conversamos brevemente. Em seguida, veio a coordenadora de marketing, que nos levou até uma pequena sala de reuniões.

Paula Salvador de Toledo, médica intensivista, não se atrasou. Usando um sapatinho preto de salto mediano e um lenço azul envolto no pescoço, ela se sentou e ligou seu tablet. Centrada, a tensão era nítida. O assessor acompanhou a entrevista.

Ela disse que chega ao hospital às 7h30, tira a sua roupa e veste a do hospital. "Teoricamente, a gente ficaria oito horas na UTI, mas quase todos os dias saímos mais tarde. Às vezes, isso acaba se estendendo ao fim de semana também", conta.

A primeira coisa que faz é visitar os pacientes mais graves. Depois, participa de reuniões para estabelecer as metas do dia, visita os pacientes menos graves e faz ligações para as famílias.

Com um olhar triste e gestos que refletem indignação, ela desabafa:

Estamos esgotados. É um misto de cansaço, frustração e revolta ao ver que a situação do país não melhora. Não temos uma diretriz unificada do Ministério da Saúde, as pessoas também já estão cansadas e não colaboram

Diferentemente das primeiras "ondas", a médica conta que agora chegam ao hospital pacientes mais jovens, que não têm comorbidades, mas acabam ficando muito mais tempo na UTI. Antes, os idosos morriam rapidamente.

"Ainda me emociono com cada morte no hospital"

Além de coordenar a UTI da Divisão de Moléstias Infecciosas e Parasitárias do HC, Ho Yeh Li é conselheira da OPAS (Organização Pan-Americana da Saúde). Ela fez parte do resgate dos brasileiros que estavam em Wuhan, na China, pouco depois da descoberta do novo coronavírus. Também trabalhou nos surtos de H1N1 e febre amarela no Brasil.

Até pela experiência e especialidade em que atua, não foi um problema se adaptar à nova vestimenta e a usar máscara o dia todo. "Já me peguei tentando colocar comida na boca enquanto estava de máscara", conta.

No momento da entrevista, ela usava seu "tênis para covid-19", que utiliza apenas quando está no hospital. Chega em casa e já tira —algo novo para ela.

Em meio a um ambiente de tanta dor, sobretudo agora, com a média móvel diária de mortos acima de 2.000, a infectologista conta que nunca perdeu a sensibilidade e ainda se emociona com cada paciente que morre no hospital. "Se não sentir mais a perda de uma vida, deixo de ser humana", diz.

Há 20 anos no HC, o momento de conversar com as famílias ainda é tarefa difícil. No começo, foi complicado se acostumar com ausência de "olho no olho", do contato físico para anunciar uma perda. Agora, com pacientes cada vez mais jovens, o telefonema parece ser ainda mais dolorido.

"Mas teve uma coisa que não mudou ao longo da pandemia. É comum ligarmos para um parente e ele contar que tem mais cinco familiares na mesma situação", relata enquanto faz uma longa pausa. "A sensação é que a doença vai exterminar uma família inteira."

Não tem apenas um culpado. Com certeza, a gestão federal foi muito ruim, mas será que não tinha outro mecanismo para melhorar? E os senadores e deputados, não poderiam ter feito algo antes? Todos cruzaram os braços para ver essa péssima gestão.

Ho Yeh Li, coordenadora da UTI da Divisão de Moléstias Infecciosas e Parasitárias do HC-FMUSP

"É inaceitável perder vidas para uma doença que tem vacina"

Chegamos ao assunto 500 mil mortes e a médica do Hospital São Luiz faz uma pausa, respira e fica em silêncio por alguns instantes.

"500 mil mortes são uma tristeza enorme", sussurra a médica com a voz embargada e de cabeça baixa. "São 500 mil amores de alguém, filhos de alguém, pais de alguém. Sinto muito por cada um, principalmente hoje, que vemos que, de fato, a vacina faz diferença, e isso poderia ter sido diferente."

Paula Salvador de Toledo conta que já trabalhava em UTI e com cuidados paliativos (ou seja, dá assistência a pacientes com doença incurável), por isso está acostumada a ver pessoas morrendo. "Mas perder a vida para uma doença que tem vacina, não dá. A partir do momento que já tem alguma coisa que se possa fazer, é inaceitável."

De um lado, há a família do paciente desesperada por não poder visitá-lo e participar de alguma forma dos seus cuidados. Do outro, tem o paciente, que quando não está intubado fica vendo na TV o número de mortes só subindo —o que o deixa ainda mais fragilizado e ansioso. E os profissionais de saúde? Ficam no meio tentando lidar com tudo isso.

Diante do cenário avassalador, Paula relata que viu muitos profissionais da linha de frente não suportarem a situação e terem crises de ansiedade. "É um burnout (esgotamento profissional) generalizado da equipe multidisciplinar, incluindo o pessoal da limpeza", diz a intensivista, que faz da atividade física a sua válvula de escape.

A UTI sempre esteve cheia, mas estamos num cenário muito privilegiado. Nós (da rede particular) temos um sistema que foi capaz de se moldar. Temos reuniões diárias de gerenciamento de leitos e conseguimos remover um paciente, alocar outro. A gente sempre deu um jeito. Aqui não faltou leito nem medicamentos para intubação

Paula Salvador de Toledo , intensivista do Hospital São Luiz Morumbi (SP)

Normalizamos a catástrofe

O HC já recebeu cerca de 9.000 pacientes com suspeita de covid-19. Desses, 8.000 tiveram a doença grave/gravíssima. De acordo com o hospital, 63% tiveram alta, 32% morreram e os outros 5% seguem internados. A médica lamenta a situação e vê um "conjunto de erros".

Infelizmente, a nossa sociedade, na situação em que está, normalizou a catástrofe. E não tem nada pior do que isso.

Por trás de uma aparente tranquilidade, ela acumula preocupações típicas de quem conhece bem a saúde pública. "Onde estão os 200 pacientes que internamos por ano com tuberculose ou hepatite? Cadê? E os pacientes com HIV? Penso no atraso do diagnóstico dessas e de outras doenças", desabafa.

"Faço parte de um grupo de coordenação e acompanhamos o número de pacientes esperando leitos de UTI. Temos o grupo de covid e o grupo sem a doença. Como fazemos esse jogo? Essa conta não fecha", diz.

Por duas vezes, perguntamos como a infectologista faz para lidar com a situação, como ela relaxa? Sem praticar atividade física —uma válvula de escape para o estresse— por conta de um problema no joelho, a médica falou que se apega às boas notícias, como quando um paciente recebe alta do hospital. É um misto de emoções, ao mesmo tempo em que nunca mais quer ver aquele paciente ali, há uma dificuldade na despedida, é como se fosse alguém da família.

Longe dos amigos e dos pais, que resolveram ficar em Taiwan, onde Ho Yeh Li nasceu, ela conta que os colegas de trabalho acabaram virando sua família. Há consolo, conversa e carinho. É dessa união que vem a força.

Contexto privilegiado

Paula Toledo explica que os pacientes que são hospitalizados geralmente não chegam ao São Luiz em estado grave —e isso se deve às suas condições financeiras.

"Quando abrimos o histórico, eles já passaram outras vezes pelo pronto-socorro, então têm uma tomografia anterior e a gente pode comparar. É claro que estamos falando de um cenário extremamente privilegiado, de pessoas que possuem bons planos de saúde e, de um modo geral, um entendimento maior da situação. Além disso, podem deixar o trabalho e vir ao hospital", diz.

No hospital, os pacientes são reavaliados por orientação do pronto-socorro e, segundo a médica, isso faz toda a diferença para os pacientes mais graves —público que ela optou por cuidar.

"Lidar com pacientes graves sempre foi algo que me motivou muito. Acho que, quando a pessoa tem um problema sério de saúde, ela se abre de uma forma diferente, você consegue vê-la de verdade", relata, acrescentando que considera isso uma oportunidade de crescimento e aprendizado.

Embora os pacientes fiquem na mesma UTI, eles são separados por um box, o que traz um certo conforto, pois se a pessoa estiver acordada, ela acaba sendo poupada de ver outros em estado mais grave ou até morrendo.

Por isso, mais uma vez a médica reforça que está em uma conjuntura diferenciada, não com alegria, mas com um certo alívio, e enfatiza que a esperança é uma força que faz com que ela acorde todos os dias e vá trabalhar.

Cuidados para se proteger da covid-19 devem continuar

  • Evite aglomerar-se

    Se puder, fique em casa, fazendo o isolamento social

  • Prefira o ar livre

    Caso precise sair, opte por lugares abertos, com maior ventilação, e mantenha o distanciamento

  • Siga usando máscara

    Não se esqueça das máscaras! Em locais mais cheios, use o modelo PFF2/N95, que proporciona maior proteção

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  • Mantenha a higiene das mãos

    Lave com água e sabão ou use álcool em gel se estiver fora de casa

  • Proteção coletiva

    Não deixe de tomar a vacina quando chegar sua vez. Elas são seguras e eficazes!

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