Sem regras: correr é mais simples do que parece, mas vá com calma
Em meados de agosto, decidi praticar corrida. Baixei da internet uma planilha de treino para iniciante e busquei por dicas que me respondessem à pergunta: como começar a correr?
Pensando agora, é estranho se questionar sobre algo que, em tese, a gente faz desde criança e eventualmente faria numa emergência. Andar e correr se aprende com o desenvolvimento corporal, por estímulos, não seguindo uma forma adequada.
Mas a pergunta é genuína dentro de um contexto:
A maioria de nós parou de movimentar tanto o corpo conforme crescemos, e correr saiu da rotina.
Nas redes sociais, pipocam orientações para respirar melhor, manter a postura e começar a correr do jeito certo.
Quando vemos corredores amadores completando 5 km, 21 km ou maratonas, parece coisa de outro mundo.
Se tem alguém ensinando uma técnica para correr, ela deve ser a chave do sucesso, certo? Não é bem assim.
"Correr é natural do ser humano, é simples, mas as pessoas tendem a dificultar e querer colocar barreiras", aponta o treinador Ricardo Hirsch, diretor da assessoria esportiva Personal Life. "Fazer treinos específicos é bom, mas não é essencial."
A fisioterapeuta Raquel Castanharo, mestre em biomecânica da corrida, também defende a simplicidade: é só colocar um tênis e sair correndo. Às vezes, nem isso.
"Os melhores corredores do mundo foram ter o primeiro tênis já adultos", conta ela, que teve a oportunidade de conversar com recordistas mundiais de maratonas.
Se você tem objetivos mais complexos, como correr uma maratona muito bem ou correr rápido, vai precisar de orientação. Mas para ter saúde e ser feliz, é só sair correndo. Raquel Castanharo, fisioterapeuta
Ela observa que a maioria das dicas disseminadas não tem embasamento científico e pode, muitas vezes, afastar a pessoa do esporte. Já que se ela não consegue replicar o que é dito, passa a acreditar que não sabe "correr direito" e desiste.
É simples, mas tenha calma
Nos primeiros treinos de corrida, você vai perder o fôlego rápido, aquela dorzinha na lateral do abdome aparece e a canela fica dolorida. Experiência própria. Mas não é normal sentir dor nem se lesionar e esses são sinais de que o corpo está sobrecarregado.
O indicado, então, é reduzir a intensidade, mas, na vida real, as pessoas tendem a ignorar esses alertas e seguir treinando. Elas vão evoluir, ficarão empolgadas e inundadas com os hormônios que dão sensação de prazer e bem-estar. O gostinho dos primeiros cinco, dez, 15 minutos correndo sem parar é especial e motiva.
Em certo ponto, a capacidade cardiorrespiratória estará muito bem, obrigada, e a tendência é fazer muito mais em pouco tempo. Mas a evolução musculoesquelética é mais lenta, e aí surgem as lesões.
Nessa hora, vale praticar o mantra dos especialistas em corrida: equilibrar capacidade e demanda.
- Capacidade é o quanto seu corpo aguenta, o quão fortalecido (ou não) ele está para dar conta da carga que será exigida dele.
- Demanda é a intensidade dessa carga, dos exercícios que você vai fazer. Pode ser aumentar a velocidade, a quilometragem ou a rotina de treinos.
"Se você impõe sobre o seu corpo uma demanda que é maior do que a sua capacidade, vai ter um problema. E o corredor iniciante tende muito a fazer isso", diz Castanharo.
Segundo Hirsch, leva de oito a 12 semanas para o corpo se adaptar a um estímulo físico, então pular essa etapa é arriscado. Se um incômodo surge nesse período, não é preciso interromper a prática, mas diminuir a intensidade e manter a constância.
Fatores de lesão
A corrida é uma sucessão de saltos cujo impacto chega a três vezes o peso corporal, que precisa ser absorvido pelo conjunto de músculos e articulações. Por isso, eles precisam ser fortalecidos com exercícios —pode ser musculação ou outra atividade de preferência, desde que canse o músculo.
Nesse sentido, pisar com força exagerada no chão (alto impacto) ou muito longe do tronco (perna mais estendida) aumenta a sobrecarga e, consequentemente, o risco de lesão. Uma dica para saber se o impacto está alto é ouvir e sentir quando o pé bate no chão, seja na rua ou na esteira.
Somado ao aumento desproporcional de carga, esses movimentos são dos poucos com evidência científica sólida até agora para se indicar uma modificação. "Cada pessoa tem um tamanho de corpo, uma vivência no esporte, um tamanho de músculo. Dá para o corpo absorver esse impacto de mil jeitos", afirma Castanharo.
Mesmo assim, não há garantia de evitar lesão, segundo Hirsch, porque até atleta profissional se lesiona.
Não é execução de movimento, fortalecimento ou recuperação, é o conjunto de atividades que pode deixar o corpo melhor. Mas se errar a dosagem de carga, machuca. Ricardo Hirsch, treinador físico
Os mitos que te contam
Ao pesquisar na internet sobre como começar a correr, você pode se deparar com dicas sobre o tipo de pisada, o melhor tênis, o ângulo de braço adequado e um jeito "certo" para respirar —outra coisa que a gente já nasce fazendo.
Entenda a seguir o que faz ou não sentido nessas orientações:
Tipo de tênis
O calçado ajuda na absorção de impacto, promove melhor rendimento e há diferentes tecnologias que visam incrementar essas finalidades. Mas, em estudos, a relevância está em outro ponto.
"O calçado depende muito da adaptação do sujeito a ele. Não existe um único que seja bom para todo mundo", afirma Roberto Bianco, doutor em biomecânica e professor da Universidade Ceuma e da UFMA (Universidade Federal do Maranhão).
Ele explica que nosso sistema nervoso se ajusta para andarmos ou corrermos de forma segura, e o tipo de calçado interfere nessa adaptação.
Se um tênis ser superior a outro depende do ajuste do corpo, o melhor tênis é aquele com que você consegue correr confortavelmente.
Tipo de pisada
Enquanto corre, há quem pouse o pé com o calcanhar, outros com o meio do pé e alguns mais com a parte da frente. Já no chão, o pé geralmente não fica reto, ele pende para dentro ou para fora, no que se chama de pisada pronada ou supinada, podendo também ser neutra.
"Não importa. Todas as pesquisas recentes e bem feitas mostram que a pisada não muda o risco de se machucar e o tênis não tem efeito", aponta Castanharo.
Bianco observa, porém, que o tipo de calçado —se com solado mais duro, se mais baixo ou alto— pode interferir no tipo de pisada, o que varia também com o tipo de terreno onde se corre. "Tem tecnologias que visam direcionar a técnica, mas o problema mesmo é a adaptação", diz o professor.
Segundo ele, aterrissar com o calcanhar aumenta o impacto e sobrecarrega menos panturrilha. Com o antepé, o impacto diminui, mas força a musculatura da panturrilha.
Em todos os casos, é possível absorver bem o impacto e ele indica não forçar uma mudança de técnica. "Treine o corpo e ele naturalmente vai modificar o padrão de corrida se assim for melhor", diz.
Se a pessoa corre sistematicamente de um jeito que minimiza o impacto da corrida, impor mudança sobrecarrega a estrutura. Roberto Bianco, doutor em biomecânica
Cadência
Cadência é o número de passos que se dá por minuto. Uma regra vista na internet é mantê-la em 180, mas isso é uma média e, na realidade, corpos de tamanhos diferentes têm uma amplitude de passada distintas.
Se você é iniciante, não é algo para se preocupar. Mas se você almeja performance, vale considerar melhorar, dentro do seu limite de conforto e sem pensar muito em números.
O ponto é que uma cadência muito baixa pressupõe maior tempo de contato do pé com o chão, aumentando a carga sobre ele e o gasto energético para saltar.
Ângulo do braço
Se você viu que tem de manter os braços em 90 graus e bem perto do corpo, desencana. "Correr com o braço paralelo rente ao tronco, só Tom Cruise em Missão Impossível", brinca Castanharo. "Recordistas mundiais correm com os braços cruzando à frente do corpo, levantadinho. Não tem padrão."
A fisioterapeuta costuma exemplificar com a maratonista queniana Brigid Kosgei, que tem uma postura que seria considerada "errada" —joelho caído, braços levantados—, mas foi recordista em maratona feminina.
Postura e posição dos ombros
Já ouvi que tem de manter o peito aberto, ombros para trás e relaxados. Mas, segundo os especialistas, haveria pouco benefício em alterar uma estrutura corporal que já está condicionada desde sempre.
"O que importa é manter a capacidade e demanda do ombro. Chega uma hora que ele cansa, porque tem de vencer a gravidade e girar. Para dar capacidade é necessário manter a força muscular", explica a fisioterapeuta.
Respiração
Inspirar em quatro passadas, expirar em quatro passadas. Até tentei, mas não funciona quando se quer aumentar a velocidade. Castanharo reforça que não há técnica para respirar na corrida, e o condicionamento virá com a prática.
E não se preocupe em ofegar, porque isso melhora com o tempo, mas não some. Ofegar é inevitável, pois é uma forma do corpo colocar mais oxigênio para dentro a fim de suprir a demanda de esforço.
Apenas corra
Estar sedentário, ter sobrepeso ou alguma condição articular não são impeditivos para começar a correr. Mas a prática precisa ser feita conforme a condição física de cada um e, se possível, com acompanhamento profissional.
Segundo a OMS, até 5 milhões de mortes poderiam ser evitadas a cada ano se as pessoas fossem mais ativas fisicamente. E como os benefícios da corrida superam os riscos, a dica dos profissionais é começar e continuar.
"Nos dois primeiros meses, termine todos os treinos com a certeza e vontade de fazer mais. É a melhor forma de não queimar a largada. Você vai condicionar, adaptar seu corpo e a chance de ter dor e se machucar é menor", diz Hirsch.
Também não há uma regra geral que valha para todas as pessoas. Alguns pontos terão a importância devida de acordo com cada um, se há risco de lesão ou não.
"Se uma criança respira, corre, agacha sem ninguém ensinar, não se preocupa, seu corpo sabe fazer naturalmente. Você pode precisar de uma ajudinha, mas tudo que é muito rígido, fuja para as colinas", diz Castanharo.
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