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Ela tem doença rara que faz músculos 'virarem' ossos: 'vivo em uma prisão'

De VivaBem, em São Paulo

19/03/2023 04h00Atualizada em 19/03/2023 05h28

Maria Luzia de Brito, 44, viveu por décadas sem saber que tinha uma condição genética rara. Martinha, como é conhecida em Viçosa (CE) e na internet, foi diagnosticada em 2011 com FOP (Fibrodisplasia Ossificante Progressiva), uma doença que leva à formação de ossos no interior de músculos, tendões e ligamentos, restringindo os movimentos.

Acredita-se que existam em todo o mundo cerca de 4 mil pessoas convivendo com a doença. Segundo o Ministério da Saúde, no Brasil, 94 pacientes já foram identificados. Ao VivaBem, Martinha contou como recebeu o diagnóstico e como vem lidando com a doença ao longo dos anos.

"Nasci uma criança saudável. Quando eu tinha 6 anos, meu pescoço começou a entortar, meu braço foi ficando mais rígido. A medicina não conseguia diagnosticar porque naquela época não tínhamos o conhecimento que temos hoje.

Não tenho muitas lembranças da minha infância, mas me recordo que ainda conseguia subir em cima da carteira e pular, brincando. Lembro que, quando ia para a fila de alunos, já estava toda dura, não tinha equilíbrio. Se encostassem em mim, eu começava a cair.

Sofria muito bullying. Na época não tinha esse nome, não sabíamos o que era isso, então outros colegas me empurravam e eu caía no chão e não conseguia levantar

Estudei até o 2º ano do ensino fundamental e depois saí da escola. Até os 16 anos conseguia sentar e andar sozinha, mas minha coluna e meus quadris foram atrofiando e fui perdendo o movimento.

O primeiro diagnóstico veio em 1996, quando ainda era adolescente. Na época, falaram que eu tinha distrofia muscular. As patologias são muito parecidas, mas só mais tarde percebi que me deram um diagnóstico errado.

Martinha - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Martinha Brito foi diagnosticada com FOP aos 32 anos
Imagem: Arquivo pessoal

'Aceitei minha missão'

Os médicos identificaram a FOP apenas em 2011, quando eu tinha 32 anos, após eu sofrer três crises respiratórias. Ficava me debatendo porque eu estava asfixiada.

Fiz uma consulta com um ortopedista em Fortaleza e ele não conseguiu me dar um diagnóstico. Depois, me deram uma consulta em um neurologista, que me encaminhou para um especialista. Fiquei internada durante cinco dias e aí então descobri minha patologia.

Quando recebi o diagnóstico, não me espantei. Na hora, não chorei. Antes do diagnóstico, questionava por que Deus fez isso comigo, por que eu tinha sido escolhida para viver isso.

Depois, aceitei que tinha uma missão: de mostrar para o mundo inteiro que nós, pessoas com deficiências, somos capazes. É algo muito desafiador viver em uma prisão de ossos

Fui criada pelos meus avós que me ajudaram muito. Depois que eles faleceram, sobrou só a minha mãe. O meu pai me deixou na infância e depois descobrimos que ele foi assassinado quando eu tinha 18 anos, em Brasília. Hoje, quem me ajuda é uma cuidadora.

livro - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Martinha é autora do livro 'Prisão em Ossos'
Imagem: Arquivo pessoal

Essa doença não tem cura nem tratamento. Os músculos vão enrijecendo, os dedos atrofiando, os tendões encolheram, os ossos vão perdendo todas as articulações e o corpo deixa de ter movimento.

Já não consigo levantar os braços, pentear meu cabelo nem me vestir sozinha. Não consigo sentar nem dobrar as pernas.

Apesar disso, ainda faço muitas atividades. Consegui comprar uma casinha com muito conforto. Por meio de uma vaquinha virtual, consegui fazer adaptações que me faltavam e abrir o meu ateliê, onde faço meus artesanatos.

Gosto de muito cozinhar, fazer todo tipo de comida. Também sempre tento manter a casa organizada: varro, lavo a roupa. Deixo tudo sempre muito limpinho.

Um novo ofício

A história dos meus artesanatos começou na pandemia. Eu viajava bastante — até por conta dos livros que escrevi. Dava muitas palestras, participava de eventos e, como sou evangélica, também ia a cultos dar o meu testemunho.

Só que, em 2020, com a pandemia, tive de recuar. Foi muito difícil porque tinha uma vida ativa e de repente não podia sair de casa.

martinha - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Ela utiliza as redes sociais para falar sobre a doença e se conectar com outras pessoas
Imagem: Arquivo pessoal

Minha mãe mora ao meu lado e, um dia, pedi a ela uns tecidos para passar o tempo. Comecei a fazer uns lacinhos e daí fui evoluindo com fitas, cetins. Não recebia nenhuma visita e passava meu tempo com o artesanato.

'Quero concluir estudo'

Às vezes tenho dias mais fáceis, outros mais difíceis, mas tento encarar a vida de forma clara e objetiva. Sou grata até pelas minhas limitações. Já conquistei muitos espaços que eram meus sonhos.

Agora, eu quero concluir os meus estudos. Já estou finalizando o fundamental e tenho o objetivo de fazer faculdade. Quero estudar psicologia e atuar com trabalho social.

O meu sonho é criar uma associação e continuar defendendo pessoas com deficiência. As minhas armas são a minha voz e as redes sociais

A sociedade é muito preconceituosa com pessoas com deficiência. Existem leis que nos apoiam, mas se não formos atrás delas, elas não vêm até você. Quero que as pessoas saibam que elas existem e corram atrás dos seus direitos.

Eu não sou diferente, eu faço a diferença. Ajudar as pessoas me faz bem."

O que é a FOP?

  • A Fibrodisplasia Ossificante Progressiva é uma doença rara e genética que atinge cerca de 1 a cada 2 milhões de pessoas no mundo;
  • Apesar de mais de 90 pessoas já terem sido identificadas no Brasil, acredita-se que há uma subnotificação e o número possa chegar a 250;
  • Ela causa formação de ossos no interior dos músculos, tendões e ligamentos;
  • A evolução é progressiva e, com o tempo, o paciente vai perdendo a mobilidade do corpo;
  • Não tem cura e nem tratamento, apenas manejo clínico, em que os médicos receitam medicamentos para aliviar as dores do paciente.
  • Pode ser identificada ainda na infância: as crianças nascem com o dedão do pé geralmente mais curto e virado para dentro -- no entanto, é necessário mais testes para comprovar a patologia.
  • A FOP não afeta as capacidades cognitivas das pessoas;
  • A expectativa de vida de uma pessoa com FOP depende dos cuidados que ela recebe e do ambiente em que ela está; há casos de pessoas com 70 anos convivendo com a patologia -- por isso, é necessário que o diagnóstico correto ocorra o mais cedo possível.

A doença é um urso adormecido. No momento em que entra em atividade, o urso vai sair fazendo estrago. Se há um traumatismo no corpo da pessoa, isso vai estimular a atividade da doença. E ela vai se manifestar em qualquer parte do corpo, não necessariamente no local onde sofreu o trauma.
Patricia Longo Ribeiro Delai, médica especialista consultora da Associação FOP Brasil e parte do Conselho Clinico Internacional de FOP.